Minha casa | Carlos Douglas da Silva Souza

 por Carlos Douglas da Silva Souza__


Foto de Avel Chuklanov na Unsplash


Primeiramente, fomos sequestrados enquanto população, nos levaram a outro continente, nos tiraram de casa, nos arrancaram do lar. Depois nos chamaram de escravos e disseram que a casa era deles, que o nosso lugar era o sub, o sub-solo, o submundo, a senzala.

Após lutarmos, criamos na “clandestinidade” nossos quilombolas e garantimos nossa liberdade, nos jogaram à sorte, sem direitos, sem emprego, sem sapatos e sem respeito. 


Ali, sozinhos e sozinhas, abandonados e abandonadas pelo Estado brasileiro que não nos via como donos de sua terra, mas como ocupantes inconvenientes;


Então decidimos tentar fazer nosso próprio lar.


Subimos aos morros, descemos aos interiores, dividimos os cortiços, os becos, as vielas e criamos as favelas.


Eles não gostaram, e até hoje tentam sabotar a nossa tentativa de local, nesse local também não temos direitos, nem cidadania. Criminalizam esse lugar, segundo eles é “Lugar de bandido”, a favela é um refúgio de proteção, mas também é um lar comunitário temporário, criamos por acaso, mas por lá a qualidade de vida ainda não encontrou o nosso CEP. 


Então, qual lar tivemos por aqui? Que casa conseguimos chamar de nossa?

“Às vezes eu acho, 

Que todo preto como eu, 

Só quê um terreno no mato, 

Só seu, 

Sem luxo, descalço, nadar num riacho, 

Sem fome, 

Pegando as fruta no cacho” (vida Loka part 2)

Essa música dos Racionais Mc’s traduz esse sentimento, você negro, negra, também queria um terreno no mato só seu? Eu sempre quis.


Talvez seja uma utopia da população negra brasileira ter uma casa por aqui, ou talvez seja um sentimento de luta, de retomada e conquista. ter uma casa aqui significa pertencer a esse lugar, a essa cidade, a esse Estado e a esse país que sempre nos quis fora ou mortos. Ter casa por aqui é deixar de ser uma população majoritariamente sem teto, que ocupa em maior número as ruas e os contratos de aluguéis.

Nós ajudamos a levantar essa terra, então essa terra também nos pertence, seja pela paz ou seja pela a força. 


O materialismo das coisas traz vida e sentido aqueles e aquelas que nunca tiveram acesso. Por exemplo, quando criança lembro da aflição do meu pai se “matando” de trabalhar para conseguir pagar o aluguel de uma casa sem qualidade alguma.

Lembro da gente se mudando cada vez que alguém humilhava ele pedindo o espaço de volta.

Lembro-me do sonho dele de possuir uma casa - o seu salário conquistado desde a infância - não tinha força para realizar seu sonho. Tínhamos apenas duas opções: ou se pagava aluguel e comia; ou não se vivia. Ali seu salário ia todo para que tivéssemos uma casa temporária e “comida na mesa”.



Hoje vejo que minhas casas são os meus ancestrais no passado, presente e futuro, que minha casa foi a proteção de meu pai que garantiu nossa existência em um local que nunca nos quis.

A minha casa é o abraço apertado de minha mãe que roga a Deus pelo meu retorno em segurança.

A minha casa é a ajuda do meu irmão, e que minha casa segue sendo aqueles e aquelas que parecem comigo e partilham o pouco que tem quando nos encontramos pela encruzilhada. 

Pois reafirmo, minha casa é meu povo, que não deixa que ninguém fique desabrigado de amor, pão, paz e teto, pois a terra conquistaremos na luta.


De onde viemos sequestrados não retornaremos mais como moradores, a África agora é casa de vó. O Brasil nos pariu forçando os corpos das nossas mulheres negras, e sempre foi um pai ausente. Nós não vamos deixar essa nação em paz até que tenhamos também parte da herança, até que todas e todos os nossos e nossas tenham um terreno no mato só seu.


(Esse texto tem como análise o abandono da população negra no Brasil, a falta de políticas públicas sobre  a divisão de terra e a falta de moradia que até hoje essa população enfrenta)





Carlos Douglas da Silva Souza é músico e cantor, graduando em história pela universidade estadual do Ceará, militante negro e alguém que se coloca a construir política negra no estado do Ceará.