Alguns ecos de Pessoa: Sobre quatro poemas inéditos de Manoel T. R.- Leal

por Luís de Barreiros Tavares_


Fernando Pessoa (1888-1935) – Descendo a Rua Garrett (Chiado)
                                       
"Há o peso de Fernando Pessoa sobre qualquer poeta português, ainda que eventualmente grande". Manoel T. R.-Leal

“Pessoa, meu mestre mental!” Manoel T. R.-Leal


Nos anos 70 do século passado, Manoel T. R.-Leal (M. T. R.-L.) foi um atento leitor e admirador de Fernando Pessoa, tendo escrito muitos poemas dedicados ao grande poeta de Mensagem. Apresentam-se aqui alguns poemas de M. T. R.-L. com passos e passagens em eco a Pessoa ortónimo, ao semi-heterónimo Bernardo Soares e aos heterónimos Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Trata-se de algumas palavras e versos presentes nestes poemas. Como se se tratasse de pontos nodais que abrem para possíveis influências ou, por assim dizer, ecos de Fernando Pessoa, (“Pessoa, meu mestre mental!”, M. T. R.-L.). Alguns poemas e excertos de Fernando Pessoa e seus outros ilustram esses ecos nestes poemas de M. T. R.-Leal. Farei alguns comentários e leituras acompanhando os poemas e excertos. Ocorreu desenvolver mais extensamente a nota do poema III, em torno do tema “estrangeiro”. 

I

(Sonhe-se o ângulo imprevisto)


Sonhe-se o ângulo imprevisto

ou imperfeito. algures.

Em o crânio de uma esquina acordada e irregular.

Que fingidos cadáveres anunciam a carne de mais um dia adiado. Que os deuses nos consentem.


Casa do Castelo – 9-8-75 – caderno Evocação de uma Mulher em Visita. 


Nota – No último verso, “fingidos cadáveres anunciam a carne de mais um dia adiado” ecoa o seguinte poema de Ricardo Reis:

Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas altas, odes findas —
Tudo tem cova sua.  Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, porque não elas?
Somos contos contando contos, nada.

28-9-1932

http://arquivopessoa.net/textos/1809




Manoel T. R.-Leal – desenho a esferográfica em papel cavalinho– 1988 – por Luís de Barreiros Tavares



“Um fingido fingimento que não se finge, nem se medita” M. T. R.-Leal

II

Não se abrange espaço cativo de amor.

E, sob a lembrança ou lenda dos teus ombros, repousa a enorme paz do meu braço.

Nem sei a loucura de beijar-te a boca, já… jaz amador, e, em muito amar, me povoo, meço, ou disfarço,

mero fingidor…


Cintra – Lx. – 5-2-77 – caderno Do Ócio e Meditação em Cintra


Nota – “mero fingidor” e o penúltimo verso com ecos prováveis do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa:


AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

1-4-1931


http://multipessoa.net/labirinto/fernando-pessoa/1


Manuscrito do poema II

*

III

Hoje, levo, em meus velhos lábios, o limiar de Lisboa…

Subtis e sábios e espessos, meus beijos roubados… quem, estrangeiro, me povoa?


Cintra – Lx. – 7-2-77 – caderno Do Ócio e Meditação em Cintra

Nota  

“Alto espanto de estrangeiro fingimento” M. T. R.-Leal

O passo “quem, estrangeiro me povoa?”, respirando qualquer coisa pessoana, poderá ecoar o seguinte excerto de um fragmento do Livro do Desassossego (LdD), de Bernardo Soares. No poema de M. T. R.-Leal e no seguinte excerto de Soares (“forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim”) há um sentimento estrangeiro de si, ou um estranhamento de si. Para não falar de um certo estranhamento que M. T. R.-Leal tinha por vezes em relação ao seu nome civil (“Não gosto do meu nome”). Daí as construções pseudonímicas – também por vezes chamados heterónimos, com as argumentações do autor – a partir dos nomes de família de linhagem aristocrática (assunto já tratado noutros estudos e a retomar num outro lugar). Leia-se Soares:

Sim, outrora eu era daqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hospede e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim. (fr. 411)

M. T. R.-Leal não terá lido em 1977 o LdD. Impossível, pois a sua primeira publicação e construção editorial, se assim se pode dizer, é de 1982. O poeta adquiriu um pouco mais tarde o LdD. No caderno A Visita de Isabel (1986), pode ler-se em epígrafe um passo do LdD: “Viver é ser outro.” Mas há no poema III, como em muitos outros, uma afinidade com Pessoa, ou uma certa linhagem pessoana, digamos assim, que marcou intensamente a poesia de M. T. R.-Leal na década de 70. Foi grande a influência da escrita e do espírito de Pessoa neste enorme poeta que, afinal, ainda está por reconhecer mais justamente.

Meu mestre erudito Ricardo Reis” M. T. R.-Leal

Já Ricardo Reis começou a ser lido por M. T. R.-Leal nos anos 60. Em 1963, o poeta comprou em Cascais uma terceira edição de Alberto Caeiro, tinha 21-22 anos. E no ano seguinte adquiriu as Odes de Ricardo Reis e a Mensagem de Pessoa. E, por exemplo, há um poema de 1972 dedicado ao heterónimo Reis, do caderno A Composição da Presença: “Afloro a floresta da angústia essencial: / os deuses ma concederam. Oh esta antiga impiedade divina” (excerto). Mas o primeiro poema escrito por M. T. R.-Leal, evocando Pessoa, é de 1967: “Nenhuma e ninguém / da flor e de Pessoa / por Lisboa de 67 / eis que se mede / o transpirar recente do dia / com avanço de vontade”. E no caderno Labor Limae – “Em memória de Fernando Pessoa (Supra-Camões)” – pode ler-se como título ou entrada de um poema de 1968: “(Em sessenta e oito) ou fulgor estrangeiro de Fernando Pessoa”.

Aquele sentimento estrangeiro (ou de estrangeiro) no poema III, de M. T. R.-Leal, pode lembrar o seguinte poema de Reis. Mas no do heterónimo, o sentimento estrangeiro afigura-se mais propriamente em relação ao exterior (“Somos estrangeiros / Onde quer que moremos, tudo é alheio /Nem fala língua nossa.”). No entanto, M. T. R.-Leal também partilha com Pessoa essa dupla dimensão estrangeira de exterior e interior, dimensão questionante da linguagem e do pensar poéticos (“quem, estrangeiro me povoa?”). E chega a escrever, dirigindo-se aos possíveis leitores: “Não é só a nota de estranheza e estrangeirismo que se vos depara na alma do autor” (“Ars Poetica II”, caderno Do Ócio e Meditação em Cintra – texto publicado na revista Caliban). Repare-se que a etimologia de “estrangeiro” e de “estranho” remete para o sentido de “extra”, de “exterior”, de “fora” (latim: extrānĕus). Portanto, mesmo o estrangeiro, ou o estranho de si, comporta, nessa interioridade reflexiva uma exterioridade em jogo. Leia-se, por exemplo, a seguinte passagem num poema em prosa de M. T. R.-Leal, de um caderno onde é frequente o sentimento estrangeiro e a correspondente palavra. Nela, exterior e interior parecem cruzar-se. E a obra é o lugar do jogo interior-exterior: “O poeta como uno e primordial unidade, define-se dúplice. Em sua obra aberrante e estrangeira, de que jamais abdicará, porque a povoou dos seus mais íntimos fantasmas e desastres” (“Ars Poetica I”, caderno Do Ócio e Meditação em Cintra – texto publicado na revista Caliban). E não esqueçamos, por exemplo, títulos como Estranho Estrangeiro (Robert Bréchon), Fernando Pessoa – O eu estranho (Georges Güntert); ou ainda Fernando Pessoa o Desconhecido de Si Mesmo (Octavio Paz), que conclui assim: “Pessoa ou a iminência do desconhecido.”

Este tema poderá abrir pontes para a questão do “outro”, dos heterónimos de Pessoa e dos pseudónimos de M. T. R.-Leal (assunto a tratar num outro lugar).

Mas voltemos ao ponto de partida: o vocábulo “estrangeiro” presente nos dois poemas. M. T. R.-Leal certamente conhecia o poema de Reis: 

Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que estejamos.

Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que moremos, tudo é alheio
Nem fala língua nossa.
Façamos de nós mesmos o retiro
Onde esconder-nos, tímidos do insulto
Do tumulto do mundo.
Que quer o amor mais que não ser dos outros?
Como um segredo dito nos mistérios,
Seja sacro por nosso.

http://arquivopessoa.net/textos/323




Manuscrito do poema III

*

IV

Que mítica praia resvala. Revólver?...

Que obscura e antiga sala

habita? Que serpente se passeia

na eterna folhagem do jardim de minha infância...

Criança enlouquecida que fui, o tempo me despoja.

Um nostálgico desejo de… A sombra fria

de um retrato. Senhor de mim. Que ironia!


Lx. 1-6-76 – caderno O Umbigo da Beleza  


Nota – Trata-se de uma outra versão de um poema já publicado na revista Caliban: https://revistacaliban.net/influ%C3%AAncias-de-pessoa-78d744a14ffc 

“Revólver” ecoa uma estrofe do longo poema “Opíário”, de Álvaro de Campos, e dedicado a Mário de Sá-Carneiro:

Porque isto acaba mal e ha-de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim
Dêste desassossego que ha em mim
E não ha forma de se resolver.

http://arquivopessoa.net/textos/2456

E uma passagem de “Fim”, do romance de Marcos Alves, obra inacabada de Fernando Pessoa:

Meteu o revólver na boca e estremeceu ao senti-lo frio contra o céu da boca. Mas lembrou-se, não sem prazer [. . .], que assim se tinha suicidado Antero de Quental. Tirou o revólver e manteve-o na mão, descaída esta sobre a colcha, ao longo da perna.

http://arquivopessoa.net/textos/2590

“Criança enlouquecida que fui” (na outra versão indicada, pode ler-se: “Criança que fui”) ecoa o poema de Pessoa: “A criança que fui chora na estrada”. Eis as primeiras quatro estrofes:

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

http://arquivopessoa.net/textos/2455





Pessoa-Persona – Pincel e tinta da china em papel Canson – Ingres Vidalon 24 x 32 cm – 2010 – Luís de Barreiros Tavares – Colecção do autor.




Uma publicação na revista “Pessoa Plural”:

“Manoel Tavares Rodrigues-Leal evocando e ecoando Fernando Pessoa”

https://repository.library.brown.edu/studio/item/bdr:1117613/


"Pessoa, persona, pessoa como eu" – Filme documentário sobre Manoel T. R.-Leal e Fernando Pessoa




Referências


FERREIRA, António Gomes (1988). Dicionário de Latim-Português. Porto: Porto Editora.


PAZ, Octavio (1992). Fernando Pessoa, o desconhecido de si mesmo, (El Desconocido de Sí Mismo, 1961). Trad. Luís Alves da Costa. Lisboa: Vega.


PESSOA, Fernando (1986). Odes de Ricardo Reis. Introdução, organização e bibliografia de António Quadros. Lisboa: Europa-América.

PESSOA, Fernando (1986). Poesia II — 1930–1933. Introdução, organização e bibliografia de António Quadros. Lisboa: Europa-América.

PESSOA, Fernando (2014). Livro do Desassossego. Ed. de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-da-china. 2ª ed.

PESSOA, Fernando (2014). Obra Completa de Álvaro de Campos. Ed. de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello; Colab. de Jorge Uribe e Filipa Freitas. Lisboa: Tinta-da-china.




Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Lisboa, 1941-2016) foi aluno das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra, frequentando até ao 5.º e último ano, mas não concluindo. Em jovem conviveu com Herberto Helder no café Monte Carlo frequentando com ele “as festas meio clandestinas, as parties de Lisboa dos anos 60 e princípios de 70”. Nesses anos conviveu também com Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, José Sebag, entre outros. O seu último emprego foi na Biblioteca Nacional, onde trabalhou durante longos anos (“a minha chefe deixava-me sair mais cedo para acabar o meu primeiro livro, A Duração da Eternidade”). Publicou, a partir de 2007, cinco livros de poesia de edição de autor. As suas últimas semanas de vida foram muito trágicas, morrendo absolutamente só.


Luís de Barreiros Tavares nasceu em Lisboa em 1962 e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa (2007). Autor de alguns livros, entre outros: O Acto de Escrita de Fernando Pessoa; Em Roda Livre, com Eduardo Lourenço; Sulcos, com Jean-Luc Nancy; 5 de Orpheu (Almada – Amadeo – Pessoa – Santa Rita Pintor – Sá-Carneiro). Colaborador regular em várias revistas (“Nova Águia”, “Caliban”, “Triplov”). Iniciou há pouco tempo publicações na revista brasileira “Mirada”. Já publicou nas revistas “Pessoa Plural”, “A Ideia”, “Philosophy@Lisbon”, “Comunicação e Linguagens”, entre outras. Vice-director da revista “Nova Águia”. Membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono (MIL). Editor das edições-vídeo “Passante”. Mantém com menos frequência a actividade de artista plástico. Já deu umas aulas. Responsável pelo espólio do poeta Manoel Tavares Rodrigues-Leal.