Nove resoluções de Natal, crônica de Anthony Almeida

 por Anthony Almeida__




                 
             1.

Chegou o Natal. Vim para Caruaru. Fazia anos que não passava Natal com meus pais. Na estante da sala, além da televisão e duns livros que lhes dei de presente — crônicas de Luis Fernando Verissimo para ele, de Clarice Lispector para ela — há porta-retratos diversos. Em destaque: eu. Menino, numa motoca de parque de diversões; soldado, no ano do meu serviço militar; graduado, com beca e capelo, na placa de formatura; rubro-negro, com a camiseta do Sport Club do Recife.

Entre o memorial e os livros, um álbum de fotografias. Dei uma olhada: são da viagem que eu e meu pai fizemos à barragem de Jucazinho. Procurei no verso das imagens e na segunda e terceira capas do álbum por alguma anotação à caneta, por uma informação sobre a data da viagem. Nada. 

Pela minha altura e pelas fotos, que também nos mostram na frente da casa do número 208, tiradas para testar a câmera e o filme, presumo que sejam do ano 2000. Eu tinha 10 anos, Jucazinho tinha 2. Me lembro que o passeio foi povoado pela expectativa de ver o paredão com a água sangrando. Seria a primeira vez da barragem. Não estava nem perto disso, faltava era muito para a represa se encher.

Ao guardar o álbum de volta na estante, uma coisa esquisita. Amontoados, num cantinho da prateleira, uma tuia de palitos de fósforo queimados. Diante da minha cara de oxe, meu pai revelou:

— Ah, isso aí era eu contando os dias pra tu voltar pra Pernambuco, voltar pra casa, né? Agora tu já tá aqui. Pode sacudir os palito no lixo. 


2. 

Depois do cochilo do almoço de domingo, a tarde já azul, meu pai vem até a porta do meu quarto. Dá uma curiada e vê que estou acordado.

— Tás acordado já, né? Vou ligar o som e botar uma coisa. Bora ver se tu gosta.

Acordado, escuto a casa se encher de forró. "Forró das antigas (românticas) — as melhores músicas mix" é o nome da playlist do YouTube, que ele bota a tocar pelo celular, conectado, via bluetooth, numa caixa de som potente.

— "A noite passa devagar / Estou aqui deitado só / No tique-taque do relógio / Me aqueço com o seu lençol / Gostaria de saber onde você está / Hoje à noite você não vai acabar sozinha".

Sorridente, meu pai se admira:

— Eita que ele sabe até cantar.

Emendo num falsete:

— "Amor, eu sempre estive sozinha / Eu nunca me importei até lhe conhecer / E agora você me escolhe / Como deixá-lo sozinho? / Como deixá-lo sozinho?".

A banda Calcinha Preta segue o forró e eu revelo:

— Isso aí é o que eu mais canto, quando vou nos karaokês do Recife!

— E é, é?

— É! Minha especialidade é gerar entretenimento de qualidade cantando forró dos anos 90 e 2000.


3. 

— É tão bom passar pela porta do quarto e ver que meu fí tá aqui! 

A satisfação é da minha mãe. Outra coisa que ela também gosta é de sair para passear comigo. Não precisa ser nada demais. Jantar numa soparia, meia sopa de carne é suficiente; caminhar pela noite da cidade e comentar a decoração natalina; ir ao shopping só ver o movimento; circular no ônibus e sentir o ventinho da janela...

Já eu, eu gosto de tudo isso e de levar ela na livraria. No shopping tem uma. Vou garimpando livros e deixo alguns em sua mão. Caço mais e mamãe fica lendo uma das minhas sugestões. Hoje, leu umas três crônicas de Martha Medeiros. Voltamos para casa com o livro dela e outro de Jorge Amado: Dona Flor e seus dois maridos.

Vim no ônibus folheando o calhamaço e caindo na risada. Contei a ela que estava doido para ler esse, que já conhecia a história, por causa do filme, que mesmo assim valia ler, que o jeito que Amado escreve é gostosinho, que a história de Flor, Vadinho e Dr. Teodoro é muito divertida, que eu vou entrar pela madrugada lendo, que se, lá no quarto dela, chegar o som da minha risada, ela já vai saber o motivo.

Tô aqui lendo e "Vadinho caiu no samba com aquele exemplar entusiasmo, característico de tudo quanto fazia, exceto trabalhar". Gargalho. Do quarto, minha mãe também deve estar sorrindo. Um riso mais contido, de canto. Um riso de satisfação por saber que estou aqui.


4. 

Semana passada:

— Quando é que você vem aqui, meu fí?

— Vou esse fim de semana.


5.

Chegou o fim de semana. 

Fim de semana de Natal. 

Pelo WhatsApp, antes de sair do Recife, avisei aos meus pais que estava chegando. Paguei 40 reais no ônibus e vim.

Depois de 2h, estou aqui.


6.

Primeira janta: 

cuscuz com boi guisado e "Rochedo Cola pra arrotar".


Café da manhã:

pão com queijo de coalho, uva passa e ketchup.


Almoço:

maxixada com arroz branco feito na cuscuzeira, "que fica mais soltinho". 


— Desse jeito eu vou ficar mimado.

— Ah, meu fí, quando tu vem, eu gosto de te ajeitar!

— Tá certo. Também vou ajeitar você, mamãe. Bora passear mais tarde?

— Opa! Bora simbora.


7.

Segunda janta:

Meia sopa de carne e Pepsi Twist.


— Um suquinho de umbu seria mais saudável, né?

— Também acho, pena que não tem. Depois passo no mercado e compro a polpa pra gente tomar, viu?


8.

No segundo almoço, a gente tomou suco de polpa de umbu. Meu pai, conhecedor da fruta, projetou:

— Quando tu vier de novo, lá em março, que é a época do umbu, a gente toma direto da fruta, viu?

— Eita, coisa boa. Vai ter umbuzada também?

— Opa, vai sim! — de olhos distantes, pensou um pouco e me questionou: — Mas tu vem ver a gente de novo antes de março, né?

— Venho, venho! Venho umas duas vezes, ainda. E venho depois também, pra gente fazer as fogueiras de Santo Antônio, São João e São Pedro.

— E assar milho na brasa!

— Milho e queijo de coalho!!

— Siiiim, milho e queijo de coalho!!!


9.

Meu pai é um — peço licença a Rubem Braga para usar uma adjetivação de sua lavra —, é um "desses espíritos insaciáveis, que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas". Fazedor de coisas de muitas naturezas, ele inventa traquitanas e vai saciando a curiosidade. Já fez tamborete, porta-escovas de dentes, viveiro, gaiola, porta-toalhas, alçapão, ratoeira, cabide abre-e-fecha, cama, girau, barraca de feira, vigas, lajes e casas inteiras.

Nos dias que correm, tem se ocupado, mais uma vez, de fazer chocadeiras e de criar os filhotes que delas nascem. Além dos ovos de galinha, meu pai agora está tutorando a chocagem de codornas. Botou um termostato e controla, com uma simples programação nos botões, o acender e o apagar de uma lâmpada incandescente, que, dentro da chocadeira, distribui o calor numa temperatura adequada à geração dos pintinhos e codorninhas.

Numa caderneta, tem anotado os tipos de rações que devem ser dados para cada espécie e a cada etapa de crescimento. No quintal, cria os galos e as galinhas adultas que garantem a continuidade da produção. E todo mundo tem nome: Asa Branca e Lampião; Faísca, Fumaça, Gorda, Pigmeu, Patativa e Ovo Azul.

— Ovo Azul?

— É, porque ela bota ovo azul.

— Justo.

— E tem três que ainda é frango e a gente não sabe se é galo ou galinha. Quando descobrir, a gente coloca nome.

No terraço, vive Veterano, uma codorna macho. Ganhou esse nome, pois é um remanescente. Um cassaco, no meio da madrugada, entrou no viveiro e atacou a coturnicultura. Ferido, Veterano, que ainda não se chamava assim, recebeu, das mãos do meu pai, curativos e antibióticos. Foi o único a sobreviver a guerra. 

Ao longo do dia, Veterano canta algumas vezes. Na verdade, o som que emite parece mais um berro. Eu nunca tinha ouvido berro de codorna e, da primeira vez que escutei, achei não só esquisito, achei foi macabro. 

— Isso, no meio da noite, faz medo, num faz não?

— Faz nada!

— Faz, homem! Parece a coruja rasga mortalha.

Parecer, parecer, não parece. Mas faz medo igual. É um cro-cra-crau meio medonho. Papai, contudo, sorri quando Veterano escancara o bico; me manda prestar atenção:

— Cro-cra-crau.

— Ô, papai — ele imita, com uma voz fanha.

— Oxe, como é?

— Escute, escute!

Aguardamos mais um berro da codorna:

— Cro-cra-crau.

— Ô, papai — imita de novo, depois gargalha e conclui: — Ele fala "Ô, papai".

O pior é que parece mesmo. 

Ganhei um irmão.

Veterano.


Caruaru. Dezembro, 2023.



Anthony Almeida
nasceu em 1989, em Caruaru/PE. É cronista, geógrafo, professor e editor-adjunto da RUBEM – Revista da Crônica. Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado em Geografia Literária na UFPE, campus Recife, sobre o tema ‘Geograficidades do mundo vivido-escrito na crônica brasileira’. Escreve para a Revista Mirada. Saiba mais em: https://linktr.ee/anthonypaalmeida