Seco, crônica de Renata Meffe

por Renata Meffe__


                                             
                                                            
                                                              
   Por onde andava o tomate seco até a década de 90, quando passou a ser companhia inseparável da rúcula? Tente encontrar no Brasil receita em que uma ruculinha seja vista desacompanhada. Praticamente impossível. Como fã desta folha verde cheia de ardor e bossa — e hater do seu parça — me vejo impedida de saboreá-la fora de casa. Fazendo às vezes de marido tóxico, ciumento, o desidratado não a deixa sair sozinha por aí. Para piorar, tudo indica que o tomate seco, ao contrário do creme de papaia com cassis, veio para ficar. 


Se na atualidade pipocam várias figurinhas fáceis que em minha infância nem existiam (além do tomate seco, podemos citar as temakerias, a pitaya, os crepes em forma de pênis e o bordão ¨é sobre isso e tá tudo bem¨), presenças antes constantes sumiram por completo. Caso da expressão ficar de bode¨, do hi-fi, da calça bailarina, da maria-mole, do Bubbaloo banana, do coquetel de camarão, das ceramidas e do pequinês. 


Por outro lado, o pastor alemão, dantes deveras popular, embora tenha andado meio escondido, vem retornando com força, assim como a samambaia. Em São Paulo, esta planta deve parte de seu revival aos novos moradores do bairro de Santa Cecília, que a reintroduziram à sociedade em cenários gentrificados. 


Já o boom de alimentos como a quinoa, antes restritos a uma pequena parte do mundo, e atualmente disponíveis nos quatrocentos cantos do planeta, não deixa de ser um tipo de gentrificação alimentícia. Eis a beleza do mundo globalizado. Nem precisamos nos mudar para um determinado lugar para ferrar a vida dos que levavam séculos em paz por ali. Afinal, por que nos contentar apenas com a destruição do nosso Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Amazônia e Santa Cecília, se podemos introduzir a quinoa na dieta e contribuir para acabar também com o Altiplano andino, não é mesmo?


Há ainda os falsos desaparecidos. Talvez participando de um programa de proteção à testemunha, eles continuam na área, mas tiveram que mudar de identidade. Foi esta a saga da cor palha, rebatizada de nude (termo que ignora a diversidade de cores dos corpos nus); de cumbuquinhas e tigelonas, reduzidas a bowls; da calça fusô, que hoje só atende por legging; e do collant que, trocando a cidadania francesa pelo passaporte inglês, foi rebatizado de body. Imagino qual o destino de todas aquelas paleterias mexicanas, por um curto período onipresentes nas cidades brasileiras. Estarão onde previamente se abrigavam os tomates secos? Ou as paletas se viram fora de perigo e recuperaram a antiga identidade, voltando a adotar o simpático nome de picolé? 


A gourmetização e influência estrangeira atingem inclusive o universo da escrita. Não por acaso, em uma crônica qualquer, o leitor se depara, aqui e ali, com palavras como boom,  hater, revival e gourmetização. E os termos vão sendo tão rapidamente incorporados à nossa rotina vocabular que nem se faz mais necessária a finesse de apresentá-los grifados em itálico.


Na cultura capitalista apoiada em modismos, com as pessoas não é muito diferente. Nos meus tempos de escola, garotos denominados Rodrigos surgiam de todos os lados como saúvas depois da chuva, desde a 1ª série A até a 8ª C. Nos dias que correm, só é possível encontrar exemplares desta espécime com mais de 25 anos, o que me faz presumir que em menos de um século serão raríssimos. Outro exemplo: outrora havia muitas Auroras. Mas desapareceram, amargando um longo crepúsculo. Se bem que, devagarinho, já começam a despontar de novo no horizonte… 


Em breve o mesmo sucederá com as Valentinas e Enzos, nomes há um bom tempo em voga nas maternidades? Se extinguirão por décadas até voltarem a ser febre, tal qual a provocada pelos vírus que ressurgem com o descongelamento do permafrost, em decorrência do aquecimento global? Descongelado o subsolo do Ártico e com a desertificação da Caatinga, do Cerrado, da Mata atlântica, da Amazônia e dos Andes, sobrará algum de nós, roendo um grãozinho de quinoa em seu bairro gourmetizado, para testemunhar o retorno triunfal das Valentinas? Do jeito que inventamos — e descartamos — moda, provavelmente se aproxima o dia em que já não estaremos aqui para presenciar nem mais uma aurora sequer.




Renata Meffe - Jornalista, fotógrafa, documentarista, tradutora, professora & cronista. Sim, somente atividades altamente rentáveis. Escrevo ensaios que jamais estreiam.