A Barbeira do Lobisomem | Crônica de Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique Gurgel__


Foto de Klara Kulikova na Unsplash
                                                        

Foi numa pequena e simpática cidadela encravada na serra que conheci uma jovem barbeira. Tinha deixado a vida na grande metrópole para ser empreendedora no lugarejo. Não fazia tanto tempo que entrara na profissão e bem antes já lidava com tesouras e bisturis. Daí para navalha, foi um pulinho. 

Eu estava a trabalho naquele lugar e precisava dar um jeito na barba farta e no cabelo que ainda insistia em crescer apenas nas laterais da cabeça. Faltava pouco para se transformarem em dois grandes pompons grisalhos, um de cada lado.

A recepcionista do hotel sorriu, marota, sugerindo uma “cabelereira que também fazia barba”. O salão era num antigo casarão, uma placa de madeira com um lobo uivando e a inscrição “Barbearia do Lobisomem — desde 2019”, dava as boas-vindas. Deve ser uma toca, pensei comigo. Abri a porta imaginando que ia pisar num chão repleto de pelos grossos, pretos, acinzentados ou marrons, com odor de lobo, espécie de banho e tosa para os machos da terra. Mas não, os móveis eram sóbrios e havia livros de Edgard Allan Poe e Stephen King sobre mesinhas, tudo limpo e cheirando a lustra móveis com um reluzente e velho assoalho de madeira rangendo a meus passos cuidadosos. Nas paredes de tijolo aparente, uma infinidade de fotos, desenhos e cartazes de filmes de lobisomem.

O suspense se quebrou quando uma moça de óculos, loira e franzina, cabelo pintado de roxo com mexas amarelas, navalha numa mão, tesoura na outra, saiu de traz de uma parede que dividia o ambiente. O sorriso dela aliviou o susto.

— Boa tarde, barba e cabelo?

Procurando manter a pose, deixei escapar um acanhado sim.

— O senhor pode se sentar. Café?

Como em geral, nesta profissão, a moça era boa de prosa. E aqui começa a melhor parte da história. A tesoura repicava com destreza, fazendo desaparecer os pompons laterais acima da orelha. Ela girava a cadeira com tranquilidade e precisão. Depois reclinou o encosto, ajeitou minha cabeça e cobriu meus olhos com uma toalhinha cheirando a lavanda. Não lembro se afiou a lâmina nalguma tira de couro grosso como nas boas casas do ramo, mas entre uma navalhada e outra ia eliminando costeletas e pelos sob o pescoço. Com o instrumento de trabalho na minha garganta, contou que desde a adolescência era fascinada por histórias de terror e de morte. Também adorava quadrinhos macabros e eróticos e das aulas de biologia e anatomia no colégio. Quis fazer uma expedição a um necrotério, não passou da porta. Foi, então, visitar o museu de patologia de uma Faculdade de Medicina, o pai precisou assinar uma autorização especial para poder entrar.

Certo dia, viu num ônibus, o anúncio que mudaria sua vida: Instituto Coração de Jesus oferece Curso de Necromaquiagem – aula prática e simulação. Havia um porém, mal tinha 16 anos. Apelou para o pai de novo, ele nem se espantava mais. Uma coisa foi levando à outra, entrou na faculdade de Biomedicina e pouco depois prestou concurso para o IML, quatro anos atuando como técnica de necropsia. “De vez em quando, não tinha nada para fazer, então eu dava uma ajeitadinha nos meus mortos. Mexia num cabelo, diminuía a palidez de um rosto, fazia a costura de um braço, maquiava uma cicatriz. Era para que eles ficassem mais apresentáveis no juízo final ou se por acaso fossem prestar contas a Deus”.

Muitos, talvez, ficariam apavorados com a conversa e a situação. Não fiquei, nada do que é humano me é estranho, já dizia o poeta Terêncio há mais de 2 mil anos. A simpatia e o jeito descolado da moça deixavam tudo na mais perfeita normalidade. Aquele modo suave do deslizar da navalha no rosto do freguês, como se os pelos da barba saltassem espontaneamente, faria inveja a qualquer barbeiro napolitano com 50 anos de profissão. E ela nem tinha chegado aos 30 de idade. A barbeira do lobisomem quebrou paradigmas.

Serviço feito. Eu, que não me via no espelho pois a cadeira estava reclinada enquanto era escanhoado, dei de cara comigo e achei que não assustaria ninguém no evento de trabalho mais a noite.

Saí marcado pela história da moça e por seu sorriso simpático. A barba curta e o cabelo aparado, sem os pompons, me deixaram com cara de um lobisomem clean. Fui embora tranquilo, sabia que naquela noite não teria lua cheia.



Luiz Henrique Gurgel 
é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020) e "Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias" (Caravana Editorial, 2023)