Os ratos vão para o céu? , livro de contos de Vitor Miranda

 por Taciana Oliveira__


                                                         
Com humor ácido, lirismo sujo e uma honestidade brutal, Vitor Miranda nos convida a leitura do seu Os ratos vão para o céu?, uma coletânea de narrativas curtas que transita entre o conto e a prosa poética. O autor costura vivências precoces, afetos disfuncionais, críticas sociais e traumas atravessados com ironia, criando um texto que desafia qualquer classificação tradicional.


A pergunta-título, inspirada numa cena cotidiana e violenta, guia o leitor por um labirinto de pequenos absurdos cotidianos: do menino que engravida de um girino ao garoto que enterra o próprio pai, passando por cães que latem sozinhos, crianças que se jogam de prédios e famílias que desmoronam entre orações e silêncios.


A prosa de Miranda é marcada por oralidade, ritmo ágil e uma aparente despretensão que esconde um olhar aguçado sobre temas como desigualdade, masculinidade tóxica, violência, religiosidade e a crueldade das relações familiares. O autor escreve como quem confessa, mas também como quem cutuca: o texto incomoda, diverte e provoca.


No prefácio, Xico Sá alerta: “vida noves fora zero. Pule para dentro, leitor.” E é exatamente isso: uma travessia pela infância, enquanto campo minado, onde os fantasmas preferem literatura à terapia. Miranda acerta ao transformar o grotesco e o banal em matéria-prima de literatura — uma literatura que sangra, grita, mas também ri, e muito. 


O livro foi lançado pela editora Selo Neomarginal e conta com ilustrações de Fernanda Bart


Dados do livro:


Contos


Publicado pelo Selo Neomarginal


Rede Social: https://www.instagram.com/neomarginais/ 



154 páginas

 

 Abaixo o conto “A Fuga dos Cavalos”:


você quer saber a história de quando virei um cavalo? ora, quem te contou isso? as pessoas inventa muita história, menino. não gosto de contar essa. muita gente do meu povo morreu nessa noite. tá bem, tá bem, vou contar. faz muitos anos. eu era um menino quase da sua idade, sabia? pois é, meu filho. havia muito fogo. homens invadia a aldeia por um lado e o fogo pelo outro, queimando a floresta. fugi por onde o rio corria. dois homens me seguia. atiravam. ao desviar de uma bala, meu corpo selvagem tomou a forma de um cavalo que correu enfrentando a mata em busca da lua cheia. sem olha pra trás, fui levado por ela até o alto da montanha. a luz deGuaraci refletida na lua fazia a água de uma nascente brilhar. era o cristal de minha sede. pela primeira vez, no reflexo dessa água, vi meu reflexo na forma selvagem e em volta de mim via o céu e nele a cadência das estrelas. foi quando a tromba d’água surgiu da nascente de maneira mágica. bruta, selvagem e doce. me deixei levar pelo fluxo do rio como se eu fosse a onda, me sentia água como se fosse apagar o fogo que queimava a mata. eu, a plenos pulmões, os pulmões do mundo, o vapor e o líquido, respiração, a liberdade de um povo, de todos ancestrais, de toda a terra molhada passeando pelas paisagens mais encantadoras, por todos os encantados, pensava nos que ficaram pra trás e sentia culpa e também a missão de prosseguir e manter a chama de nossa alma acesa.fomos, eu e água, adentrando a noite, penetrando o dia e visualizando as cores do ato de amor do sol com a água, fomos limpando os leitos dos caminhos sem florestas e devolvendo a vida aos já retificados trechos de nossos povos já exterminados, da nossa natureza já assassinada. alagamos ruas e deixamos o alimento àqueles necessitados excluídos da dignidade, exilados do mundo originário. descemos serras dançando em suas curvas e já no entardecer avistamos o horizonte em sua plenitude, o horizonte que se acurva nesse globo e em todos os globos oculares. fugi em busca da nascente da lua cheia e cheguei em maré cheia ao oceano. em seu fundo abissal me tornei seu, com a mesma entrega com que fui da terra. seu cavalo-marinho onde o centro do céu é o mesmo centro do mar. em volta de mim milhares de estrelas e nesse céu que a lua invade num rastro em movimento encontro a divindade, e com ela realizo a noite infinita de nossa continuação.






 

Trecho do prefácio de Xico Sá

“Os ratos vão pro céu?”, de Vitor Miranda, nos devolve os roedores em um momento atordoado da infância. Um ratinho cobaia da nossa eterna falta de humanidade. Terá salvação? Existe o paraíso dos roedores para aplacar a nossa culpa? Semeio mais interrogações nesse campo minado. Este livro está repleto de assombros que reverberam lá do começo da vida. Os assombros que ficam para sempre. E viram ficção, conto, sapo ou fábula. O autor tira o melhor dos proveitos. Os fantasmas agradecem ao fabulário geral aqui descrito. Os fantasmas, como os ratos, preferem literatura à terapia ou psicanálise. 

Os pesadelos crescem e ficam adultos. Eles ainda estão aqui, junto com ratos, medos, interrogações e a crônica da realidade punk.





Vitor Miranda 
é poeta e escritor paulistano com vivências pelo Paraná e Minas Gerais. Atualmente se divide em São Paulo e Valinhos. “Os ratos vão para o céu?” é seu sétimo título lançado. Entre poemas e contos, e o romance experimental “A moça caminha alada sobre as pedras de Paraty”. É poeta e letrista da Banda da Portaria, projeto que nasceu para musicar os 
poemas de seu livro “Poemas de amor deixados na portaria” e ganhou vida. É parceiro em letras e canções de artistas como Alice Ruiz, Rubi, Touché, João Sobral, Luz Marina, Zeca Alencar e os porteiros João Mantovani, Binho Siqueira e Arthur Lobo. Também faz parte como letrista do Margaridáridas, projeto de sua parceria com o músico paranaense, Eduardo Touché. Criou em 2019 o videocast de poesia Prosa com Poeta, no qual entrevistou diversos artistas como Alice Ruiz, Maria Vilani, Bob Baqq, Daniel Perroni Ratto, entre outros. É criador e líder do Movimento Neomarginal, grupo artístico vivo que tenta vencer as amarras do mercado artístico misturando artistas de diferentes níveis (sociais) de público nos mesmos eventos.






Taciana Oliveira — Natural de Recife (PE), Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo” Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.