Quando faltam as palavras | Raphael Cerqueira

 por Raphael Cerqueira__

                

Foto de Steve Johnson na Unsplash

para Gabriel Souza


Ele me pede uma crônica. Assim, de chofre, como diziam os antigos. Pelo visto, nossa última conversa, sobre livros e literatura, mexeu mesmo com suas fantasias. Ou terão sido meus textos? Se entendi bem, anda lendo muitos deles na internet

Suspendo a pincelada. A dama de ouros, que aos poucos se revela na tela, me olha espantadíssima. Viro-me, lentamente: preciso de tempo para pensar no que dizer. Infelizmente, sou daqueles escritores a quem as palavras costumam abandonar nas horas mais impróprias.

A manhã vai pela metade. O trânsito se intensifica na Major Felicíssimo, buzinas e motores estrilam. Alguém tosse no corredor.

Que tipo de crônica espera de mim? Um retrato de si, talvez de seu estúdio; um texto  entremeando as belezas plásticas com a beleza juvenil dispersa entre cadeiras e cavaletes; ou, simplesmente, um rabisco qualquer para fins de promoção nas redes sociais?

Diluo o vermelho no branco: preencher o fundo antes de seguir para os detalhes, assim aprendi na aula inaugural.

Parado no meio do estúdio, num sorriso apolíneo, repete: “Quando sai minha crônica?” A pergunta, uma certeza. Sim, será atendido. Afinal, já atendi pedidos mais inusitados por aí... Olho os outros alunos, todos concentrados em seus desenhos e pinturas. Da parede, o Belchior reproduzido em 10x15 também parece ansiar por uma resposta. Enquanto isso, à minha frente, a natureza se faz de morta.

Estou escrevendo. Minto. Quero dizer, minto em parte: realmente rascunhei uma historieta, cujo enredo se desenvolve aqui, neste espaço dedicado às artes. Contudo, totalmente ficcional, embora com ares de crônica.

Quando tiver pronta, te mostro. Seu rosto se ilumina mais que os raios de sol que banham os quadros inacabados sob a janela. Contudo, advirto: costuma demorar, meu processo de escrita é lento, bem lento. Não minto desta vez, nem em parte: entre o rascunho e a finalização, são tantas podas e demãos, até uma crônica besta pode levar meses para ganhar o selo de “terminada”. E não quero, nem por um descuido, escrever uma crônica besta sobre este jovem. Ainda mais agora que, como dizem por aí, expectativas foram criadas.

Mas ele, noto em seus olhinhos brônzeos, tem pressa. A juventude é apressada. Ah, também já fui muito impaciente, por isso não julgo.

Volto à dama de ouros. Esta insensível tem judiado de mim nas últimas semanas: muitos detalhes, pequeníssimos detalhes, aliás, um sfumato complicadíssimo, sombreados, degradês… e o sorrisinho em ultramar-claro insiste em zombar de mim todas as vezes que penso abandoná-la, inacabada, como estes quadros aí, que se fartam de sol feito as banhistas do Cézanne.

A impiedosa — vou intitular minha obra assim, A Impiedosa de Ouros — sorri, maliciosamente. Ô vontade de jogar o copo d’água na sua cara larga e sonsa. Mas, me contenho: ao meu lado, ele observa minha inexperiência.

Estou tomando uma surra. “Curte o processo”, diz e, delicadamente, toma o pincel. Retoca o rasgado da carta — esqueci de mencionar: desenhei a carta rasgada ao meio; talvez venha daí a crueldade com que a dama me encara todas essas semanas — e é tão suave, segura, bela a forma como ele pinta… ah, eu o invejo. Minha mão, além de dura feito a pedra que educou João Cabral, é desajeitada, principalmente com pincéis finos, como este. Talvez meu negócio seja pintar paredes com rolo e broxa. Sem se desconcentrar, ele recomenda: “Curte o processo, cara, vai sem pressa”.

A Impiedosa de Ouros, no mutismo enervante, continua a me perscrutar.   



Raphael Cerqueira Silva, é mineiro São Geraldo, servidor público, graduado em Direito e História, e cronista nas revistas Vicejar e Conhece-te. Publicou Confissões, livro de contos, e A Vida Segue, livro de crônicas.