por Raphael Cerqueira__
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Foto de Steve Johnson na Unsplash |
Ele me pede uma crônica. Assim, de chofre, como diziam os antigos. Pelo visto, nossa última conversa, sobre livros e literatura, mexeu mesmo com suas fantasias. Ou terão sido meus textos? Se entendi bem, anda lendo muitos deles na internet.
Suspendo a pincelada. A dama de ouros, que aos poucos se revela na tela,
me olha espantadíssima. Viro-me, lentamente: preciso de tempo para pensar no
que dizer. Infelizmente, sou daqueles escritores a quem as palavras costumam
abandonar nas horas mais impróprias.
A manhã vai pela metade. O trânsito se intensifica na Major Felicíssimo,
buzinas e motores estrilam. Alguém tosse no corredor.
Que tipo de crônica espera de mim? Um retrato de si, talvez de seu
estúdio; um texto entremeando as belezas
plásticas com a beleza juvenil dispersa entre cadeiras e cavaletes; ou, simplesmente,
um rabisco qualquer para fins de promoção nas redes sociais?
Diluo o vermelho no branco: preencher o fundo antes de seguir para os
detalhes, assim aprendi na aula inaugural.
Parado no meio do estúdio, num sorriso apolíneo, repete: “Quando sai
minha crônica?” A pergunta, uma certeza. Sim, será atendido. Afinal, já atendi
pedidos mais inusitados por aí... Olho os outros alunos, todos concentrados em
seus desenhos e pinturas. Da parede, o Belchior reproduzido em 10x15 também parece
ansiar por uma resposta. Enquanto isso, à minha frente, a natureza se faz de
morta.
Estou escrevendo. Minto. Quero dizer, minto em parte: realmente rascunhei
uma historieta, cujo enredo se desenvolve aqui, neste espaço dedicado às artes.
Contudo, totalmente ficcional, embora com ares de crônica.
Quando tiver pronta, te mostro. Seu rosto se ilumina mais que os raios de
sol que banham os quadros inacabados sob a janela. Contudo, advirto: costuma
demorar, meu processo de escrita é lento, bem lento. Não minto desta vez, nem
em parte: entre o rascunho e a finalização, são tantas podas e demãos, até uma
crônica besta pode levar meses para ganhar o selo de “terminada”. E não quero,
nem por um descuido, escrever uma crônica besta sobre este jovem. Ainda mais
agora que, como dizem por aí, expectativas foram criadas.
Mas ele, noto em seus olhinhos brônzeos, tem pressa. A juventude é apressada.
Ah, também já fui muito impaciente, por isso não julgo.
Volto à dama de ouros. Esta insensível tem judiado de mim nas últimas
semanas: muitos detalhes, pequeníssimos detalhes, aliás, um sfumato
complicadíssimo, sombreados, degradês… e o sorrisinho em ultramar-claro insiste
em zombar de mim todas as vezes que penso abandoná-la, inacabada, como estes
quadros aí, que se fartam de sol feito as banhistas do Cézanne.
A impiedosa — vou intitular minha obra assim, A Impiedosa de Ouros —
sorri, maliciosamente. Ô vontade de jogar o copo d’água na sua cara larga e
sonsa. Mas, me contenho: ao meu lado, ele observa minha inexperiência.
Estou tomando uma surra. “Curte o processo”, diz e, delicadamente, toma o
pincel. Retoca o rasgado da carta — esqueci de mencionar: desenhei a carta
rasgada ao meio; talvez venha daí a crueldade com que a dama me encara todas
essas semanas — e é tão suave, segura, bela a forma como ele pinta… ah, eu o
invejo. Minha mão, além de dura feito a pedra que educou João Cabral, é
desajeitada, principalmente com pincéis finos, como este. Talvez meu negócio
seja pintar paredes com rolo e broxa. Sem se desconcentrar, ele recomenda: “Curte
o processo, cara, vai sem pressa”.
A Impiedosa de Ouros, no mutismo enervante, continua a me perscrutar.