Jardim de Pragas, de Lisa Alves

 por Taciana Oliveira__


Foto por Fernando Rabelo

No singular Jardim de Pragas, a poeta mineira Lisa Alves cultiva uma obra atravessada por heranças traumáticas, memória ancestral, violência de gênero e resistência feminina. Lançado pela Editora Patuá em 2025, o livro se estrutura poeticamente a partir de um paralelo inquietante com as dez pragas do Egito bíblico, reconfiguradas aqui como episódios íntimos, sociais e políticos que atingem sobretudo os corpos e as vozes das mulheres. 


A linguagem é performática, afiada e polifônica, revelando camadas emocionais e simbólicas com imagens recorrentes de sangue, terra, insetos, chuva e espelhos. Tal qual um inventário de assombrações, a poeta constrói um espaço textual onde ruínas pessoais se entrelaçam ao absurdo tragicômico, convertendo a violência histórica em alegoria mordaz. 


Inspirada em “suas mulheres mortas”, a poeta transforma o território doméstico — esse espaço muitas vezes romantizado — em um grande campo de batalha. A infância, nesse universo, não é refúgio de inocência, mas o cenário inaugural das feridas. A mãe, a avó e a tia, figuras recorrentes em seus versos, surgem como espectros de uma genealogia silenciada — mulheres que faleceram sem realizar seus mínimos sonhos. 


Nascida em Araxá (Minas Gerais), Lisa Alves tem explorado ao longo de sua trajetória formas híbridas de escrita. Sua estreia com Arame Farpado (2015) já evidenciava uma lírica marcada pela tensão e pelo deslocamento em versos com força noticiosa. Em 2022, com Quando tudo for possível, lançado em formato transmídia pela Mirada (PE), a autora expandiu a experiência poética para o som e a imagem, ensaiando uma poética da lesbiandade com forte carga sensorial e política. 


Em Jardim de Pragas, essa vocação experimental encontra um novo patamar: a materialidade da linguagem é levada ao extremo e o grotesco irrompe dos detalhes do cotidiano. O lar, mascarado de abrigo, se revela uma trincheira sutil, onde a guerra se desenrola nos gestos mais banais. A poeta finca sua voz nesse espaço do insuportável cotidiano, onde a brutalidade se oculta sob a aparência da normalidade. O tom é confessional, mas sem complacência. Rituais domésticos, memórias de velórios, bonecas enterradas no quintal, a morte dos pais, as ausências herdadas — tudo se inscreve num mosaico de realidade e delírio. 


Em diálogo com a epígrafe de Svetlana Aleksiévitch — “Quero contar minha guerra” —, Lisa Alves nos entrega um relato fragmentado de lutas silenciosas, íntimas e inomináveis, mas que, somadas, compõem uma tragédia maior: uma tragicomédia íntima, cotidiana, impiedosa. Jardim de Pragas nos lembra que o absurdo está sempre à espreita, camuflado no ordinário. Não há heróis nem heroínas. Não há deusas e nem deuses. Há somente um imenso jardim para meninos tolos brincarem de guerra e para mulheres enfrentarem, sozinhas, o legado das pragas que ainda nos habitam.


A estrutura do livro em dez partes (“sangue”, “rãs”, “piolhos”, “moscas”, “morte dos rebanhos”, “feridas”, “granizo”, “gafanhotos”, “trevas” e “morte dos primogênitos”) articula-se com as pragas do Êxodo, mas também com os traumas herdados e vividos em ambientes domésticos, rurais, afetivos e políticos. As feridas descritas, muitas vezes irreparáveis, não são somente individuais: são o retrato de uma coletividade atravessada por opressões coloniais, patriarcais e ambientais. 


Ao final, Jardim de Pragas emerge como uma obra de enfrentamento. Um exercício corajoso de dar forma a dores inomináveis, nomear os fantasmas, enfrentar a queda — “que não produz vencedores” — e reinventar-se com poesia. Lisa Alves constrói um livro que pulsa com indignação e beleza, onde a memória das mulheres é reivindicada como território de luta e criação. Um jardim em que, apesar das pragas, ainda se semeia o futuro.



Poemas do livro:




 

 



quando nasci 

vovó fez o sinal da cruz  

e sussurrou para a minha mãe: 

 

Essa aí nasceu velha, curvada,  

vai olhar para o chão a vida inteira

temendo as paisagens de sangue. 

 




piolhos 



ela contava que em 1964 

uma infestação de piolhos 

deixou o continente mineiro 

se coçando de raiva 

 

ela dizia assim: 

Aqui no continente mineiro. 

 

vovó gostava de desenhar piolhos 

piolhos e homens brancos se coçando 

piolhos e homens brancos uniformizados se coçando 

piolhos e homens brancos uniformizados com armas em punho se coçando 

 

vovó era benzedeira 

vovó era curandeira 

e gostava de desenhar piolhos 

 

minha tia que era cega 

tinha nojo só de imaginar

mamãe morria de rir — achava vovó maluca 

 

eu herdei os desenhos de vovó 

eu herdei sua maluquice 


e a secreta desconfiança  

pelos homens brancos 

pelos homens brancos e uniformizados 

pelos homens brancos, uniformizados e com armas em punho. 



espelho de três faces

 


 

a criança que deixei para trás 

surge carregada de memórias: 

 

a mãe cantarolando Atrás da Porta 

a avó benzendo os cobreiros alheios  

e a tia ajeitando as bonecas russas na escuridão 

 

a criança que deixei para trás  

se escondeu em minhas trouxas 

e como uma bússola interior 

me lança em qualquer caminho  

 

a criança que deixei para trás 

não teme mudanças 

e desenha nossas mulheres mortas  

como lagartas no casulo: 

 

Um dia voltarão com asas

 

a criança que deixei para trás  

aponta as três mulheres ecoando meu nome:


Elis, Eli, Li!


são só pensamentos soltos 

ou imaginações brotadas  

de minhas mulheres mortas 

 

a avó derruba as panelas 

a mãe me afaga 

e a tia ainda golpeia os joelhos nos móveis 

até ouvi a avó resmungando: 

 

Continuou cega, mesmo depois de morta. 

 

três vozes íntimas visitam a casa

três vozes ecoam dentro da criança

e voltam para mim como um espelho de três faces 

que um dia também deixei para trás. 



perdoável


ela sumiu por seis meses 

mas antes enviou aquele livro 

sobre a menina de cinco anos  

que sangrava galinhas com

a espingarda de chumbinho 

 

Era ela? Era eu?  

 

a menina do livro atirava  

bem nos olhos das galinhas 

 

ela não queria ser julgada  

e aprendeu muito cedo com a bisavó  

que sob o manto das trevas  

tudo é perdoável 

 

depois de atirar  

torcia cada pescoço 

ouvia cada gemido 

compreendia cada silêncio 

e por fim levava para a mãe  

alimentar a casa. 



Sobre a autora:

Lisa Alves (Araxá, 1981) é escritora e videoartista. É coeditora do portal cultural espanhol Liberoamerica e resenha livros para a revista portuguesa Incomunidade. Tem textos publicados em diversas antologias, revistas, jornais e páginas literárias no Brasil e no exterior. Codirigiu os curtas Sou indesejável (2018), vencedor do prêmio Batoque (júri oficial e júri popular) na categoria Lanterna Mágica do Festival Internacional de Cinema do Arquivo Nacional, e Depois do sétimo dia (2020), ganhador do Prêmio Elo Company no Fantaspoa. Autora dos livros Arame farpado (Coletivo Púcaro, 2015) e Quando tudo for possível (Mirada, 2022), sua obra transita entre a literatura, o cinema e a performance, dialogando com diferentes formas narrativas e estéticas.



 

Jardim de Pragas, Lisa Alves (Patuá, 2025). 

148 p.; 14 X 21 cm 

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Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo” . Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.