por Taciana Oliveira__
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Foto por Fernando Rabelo |
A linguagem é performática, afiada e polifônica, revelando camadas emocionais e simbólicas com imagens recorrentes de sangue, terra, insetos, chuva e espelhos. Tal qual um inventário de assombrações, a poeta constrói um espaço textual onde ruínas pessoais se entrelaçam ao absurdo tragicômico, convertendo a violência histórica em alegoria mordaz.
Inspirada em “suas mulheres mortas”, a poeta transforma o território doméstico — esse espaço muitas vezes romantizado — em um grande campo de batalha. A infância, nesse universo, não é refúgio de inocência, mas o cenário inaugural das feridas. A mãe, a avó e a tia, figuras recorrentes em seus versos, surgem como espectros de uma genealogia silenciada — mulheres que faleceram sem realizar seus mínimos sonhos.
Nascida em Araxá (Minas Gerais), Lisa Alves tem explorado ao longo de sua trajetória formas híbridas de escrita. Sua estreia com Arame Farpado (2015) já evidenciava uma lírica marcada pela tensão e pelo deslocamento em versos com força noticiosa. Em 2022, com Quando tudo for possível, lançado em formato transmídia pela Mirada (PE), a autora expandiu a experiência poética para o som e a imagem, ensaiando uma poética da lesbiandade com forte carga sensorial e política.
Em Jardim de Pragas, essa vocação experimental encontra um novo patamar: a materialidade da linguagem é levada ao extremo e o grotesco irrompe dos detalhes do cotidiano. O lar, mascarado de abrigo, se revela uma trincheira sutil, onde a guerra se desenrola nos gestos mais banais. A poeta finca sua voz nesse espaço do insuportável cotidiano, onde a brutalidade se oculta sob a aparência da normalidade. O tom é confessional, mas sem complacência. Rituais domésticos, memórias de velórios, bonecas enterradas no quintal, a morte dos pais, as ausências herdadas — tudo se inscreve num mosaico de realidade e delírio.
Em diálogo com a epígrafe de Svetlana Aleksiévitch — “Quero contar minha guerra” —, Lisa Alves nos entrega um relato fragmentado de lutas silenciosas, íntimas e inomináveis, mas que, somadas, compõem uma tragédia maior: uma tragicomédia íntima, cotidiana, impiedosa. Jardim de Pragas nos lembra que o absurdo está sempre à espreita, camuflado no ordinário. Não há heróis nem heroínas. Não há deusas e nem deuses. Há somente um imenso jardim para meninos tolos brincarem de guerra e para mulheres enfrentarem, sozinhas, o legado das pragas que ainda nos habitam.
A estrutura do livro em dez partes (“sangue”, “rãs”, “piolhos”, “moscas”, “morte dos rebanhos”, “feridas”, “granizo”, “gafanhotos”, “trevas” e “morte dos primogênitos”) articula-se com as pragas do Êxodo, mas também com os traumas herdados e vividos em ambientes domésticos, rurais, afetivos e políticos. As feridas descritas, muitas vezes irreparáveis, não são somente individuais: são o retrato de uma coletividade atravessada por opressões coloniais, patriarcais e ambientais.
Ao final, Jardim de Pragas emerge como uma obra de enfrentamento. Um exercício corajoso de dar forma a dores inomináveis, nomear os fantasmas, enfrentar a queda — “que não produz vencedores” — e reinventar-se com poesia. Lisa Alves constrói um livro que pulsa com indignação e beleza, onde a memória das mulheres é reivindicada como território de luta e criação. Um jardim em que, apesar das pragas, ainda se semeia o futuro.
Poemas do livro:
I
quando nasci
vovó fez o sinal da cruz
e sussurrou para a minha mãe:
Essa aí nasceu velha, curvada,
vai olhar para o chão a vida inteira
temendo as paisagens de sangue.
piolhos
ela contava que em 1964
uma infestação de piolhos
deixou o continente mineiro
se coçando de raiva
ela dizia assim:
Aqui no continente mineiro.
vovó gostava de desenhar piolhos
piolhos e homens brancos se coçando
piolhos e homens brancos uniformizados se coçando
piolhos e homens brancos uniformizados com armas em punho se coçando
vovó era benzedeira
vovó era curandeira
e gostava de desenhar piolhos
minha tia que era cega
tinha nojo só de imaginar
mamãe morria de rir — achava vovó maluca
eu herdei os desenhos de vovó
eu herdei sua maluquice
e a secreta desconfiança
pelos homens brancos
pelos homens brancos e uniformizados
pelos homens brancos, uniformizados e com armas em punho.
espelho de três faces
a criança que deixei para trás
surge carregada de memórias:
a mãe cantarolando Atrás da Porta
a avó benzendo os cobreiros alheios
e a tia ajeitando as bonecas russas na escuridão
a criança que deixei para trás
se escondeu em minhas trouxas
e como uma bússola interior
me lança em qualquer caminho
a criança que deixei para trás
não teme mudanças
e desenha nossas mulheres mortas
como lagartas no casulo:
Um dia voltarão com asas
a criança que deixei para trás
aponta as três mulheres ecoando meu nome:
Elis, Eli, Li!
são só pensamentos soltos
ou imaginações brotadas
de minhas mulheres mortas
a avó derruba as panelas
a mãe me afaga
e a tia ainda golpeia os joelhos nos móveis
até ouvi a avó resmungando:
Continuou cega, mesmo depois de morta.
três vozes íntimas visitam a casa
três vozes ecoam dentro da criança
e voltam para mim como um espelho de três faces
que um dia também deixei para trás.
perdoável
ela sumiu por seis meses
mas antes enviou aquele livro
sobre a menina de cinco anos
que sangrava galinhas com
a espingarda de chumbinho
Era ela? Era eu?
a menina do livro atirava
bem nos olhos das galinhas
ela não queria ser julgada
e aprendeu muito cedo com a bisavó
que sob o manto das trevas
tudo é perdoável
depois de atirar
torcia cada pescoço
ouvia cada gemido
compreendia cada silêncio
e por fim levava para a mãe
alimentar a casa.
Sobre a autora:
Lisa Alves (Araxá, 1981) é escritora e videoartista. É coeditora do portal cultural espanhol Liberoamerica e resenha livros para a revista portuguesa Incomunidade. Tem textos publicados em diversas antologias, revistas, jornais e páginas literárias no Brasil e no exterior. Codirigiu os curtas Sou indesejável (2018), vencedor do prêmio Batoque (júri oficial e júri popular) na categoria Lanterna Mágica do Festival Internacional de Cinema do Arquivo Nacional, e Depois do sétimo dia (2020), ganhador do Prêmio Elo Company no Fantaspoa. Autora dos livros Arame farpado (Coletivo Púcaro, 2015) e Quando tudo for possível (Mirada, 2022), sua obra transita entre a literatura, o cinema e a performance, dialogando com diferentes formas narrativas e estéticas.
Jardim de Pragas, Lisa Alves (Patuá, 2025).
148 p.; 14 X 21 cm
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Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo” . Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.