por Adriane Garcia__
*Olhos para ler no chiaroscuro de João Gomes
Hermes é dos mais primitivos dos deuses gregos. Especula-se que seu nome tenha origem nas hermas cretenses, montes de pedras pré-históricos, verticalizados, para servir como limites ou como marcos para os viajantes que, passando por ali, também deixavam sua pedra. Ao deus Hermes foram erguidas hermas, pilastras de pedras com a representação de sua cabeça no topo. Na cultura helenística, o deus grego, entre outras atividades responsável por entregar mensagens aos deuses, foi transformado no deus Mercúrio pelos romanos. Na cultura egípcia, Hermes é relacionado com o antigo deus da sabedoria Thoth. Thoth foi emissário entre os exércitos de Hórus e Seth e negociou um tratado de paz entre os dois deuses. A presença judaica no Egito acrescentou a Hermes um componente profético. Esses hermetistas egípcios dos séculos II e III d.C. uniram a Thoth o nome do grego Hermes em comunidades secretas. Thoth e Hermes se fundiram em uma nova figura arquetípica, Hermes Trismegistus. Na Europa renascentista Hermes foi associado também à transmissão de conhecimentos sagrados, à alquimia, à gnose e aos conhecimentos ocultistas em escritos herméticos que atravessaram os tempos. Fala-se de Hermes como uma espécie de arquétipo da mediação. De seu nome vieram as palavras hermetismo e hermenêutica; e é interessante que de um mesmo termo possam se originar aquilo que é oculto, fechado, misterioso, secreto e aquilo que dá luz à interpretação, que torna algo compreensível, voltando a entregar a mensagem.
Na literatura o termo hermetismo foi aplicado a um tipo de poesia. William Blake apresenta uma poesia de características herméticas no século XVIII. Depois, nomes proeminentes como Novalis, Baudelaire, Stéphane Mallarmé, Paul Valéry, Paul Celan, entre outros. Na poesia, espera-se, há sempre, em algum nível, uma desautomatização da linguagem. Na poesia hermética ocorre uma desautomatização mais radical. Os poemas privilegiam a interioridade, a intimidade, o mundo subjetivo, ainda que as representações sociais se façam sentir. Há uma concentração da linguagem em si mesma, sobretudo a valorização do vocábulo naquilo que ele pode tocar de forma inconsciente, pulsional, no seu mistério. A expressão muitas vezes se sobressai à comunicação. É uma linguagem que não quer se esconder como artifício, ao contrário de uma poesia mimética. Nela, a palavra é concisa, econômica, fazendo bastante uso da elipse; não sobressai a sintaxe, mas a parataxe, que se vale da ausência de conectivos. Pelo verso paratático, aparentemente sem nexo, costuma-se sentir estranhamento, desconforto e desestabilização. A profusão de vocábulos causa um ritmo imagético, já que apresenta imagens em uma sequência rápida. Para ler a poesia hermética, o leitor precisa abandonar algo costumeiro quanto à forma e ao conteúdo e entrar no jogo que o poeta propõe. Ele está se afastando da coloquialidade em uma proposta genuinamente literária. O hermetismo é uma linguagem artística em que o não dito é parte do projeto, a linguagem está carregada de significado, ao contrário do que parece. O poeta hermético crê no poder do vocábulo, uma esperança de que a palavra possa habitar outras capacidades humanas que não só as do intelecto. Obviamente, isso torna o poema hermético de leitura mais dificultada, não raro deixando o leitor com uma pergunta: o que o autor quis dizer com isso? A essa pergunta, respondeu um dia Mallarmé: “respondo que eu não quis dizer, e sim quis fazer, e que foi a intenção de fazer que quis o que eu disse”.
No livro Da poesia à prosa, Alfonso Berardinelli enumera quatro elementos que obscurecem o poema e que estão presentes desde sempre na poesia: a solidão, o mistério, a provocação (chocar pelo uso da linguagem, mais que pelo tema) e o jargão. A presença de um ou mais desses elementos e a intensidade em seu uso dão nuances de mais ou menos hermetismo ao poema, sendo o jargão uma espécie de hermetismo como projeto, afinal o jargão é quando a obscuridade se transforma em norma. Historicamente, o hermetismo poético insere-se em uma crise da linguagem, quando o significante e o real se dissociam, épocas em que há uma descrença na comunicação mais direta, intelectiva e que mais se crê no “gatilho” do vocábulo, aquilo que em nós pode acionar os significados das palavras, significado que ilumina a subjetividade do leitor. Na contemporaneidade é explícita a crise da linguagem. Estamos em um mundo onde a mesma coisa pode significar o seu contrário, para além das palavras, até mesmo os fatos. Não vale mais o que é, mas o que se interpreta como sendo. A chamada pós-verdade é um absurdo e diante do absurdo a literatura reage com uma desautomatização da linguagem. Em um mundo em que a confiança nas informações e nos seus veículos foi totalmente abalada, em que não se pode mais confiar naquilo que se está vendo, ouvindo, talvez reste esperança apenas no que se está sentindo. O hermetismo é uma espécie de rebelião desconcertante. Octavio Paz, em O arco e a lira traz-nos que: “Toda vez que surge um grande poeta hermético ou movimentos de poesia em rebelião contra os valores de determinada sociedade, devemos desconfiar que essa sociedade, e não a poesia, sofre de males incuráveis. E esses males podem ser mensurados considerando-se duas circunstâncias: a ausência de uma linguagem comum e a surdez da sociedade diante do canto solitário. A solidão do poeta mostra a decadência social.”
Neste Revezamento secreto, livro que temos em mão, podemos verificar que o poeta João Gomes se insere na plêiade dos herméticos. Seus poemas aqui reunidos propõem um jogo de chiaroscuro ao leitor. Não se trata de inventar a palavra, mas de deixá-la por sua conta e risco como senha que pode abrir o mistério para o leitor. O poema indaga “trouxeste a chave?”. Ao mesmo tempo, a forma escolhida pelo poeta é a denúncia de que algo não pode ser dito diretamente, algo precisa viver ainda do segredo e, neste sentido, estamos diante de um livro que tem o homoerotismo como centro de onde convergem subtemas, sejam eles afetivos ou político-sociais. Esse eixo-temático e a forma escolhida para tratá-lo revelam o estado da sociedade. O Brasil se destaca quantitativamente pelos crimes homofóbicos cometidos em seu território e socialmente vulnerabiliza grupos inteiros pelas diferenças de orientação sexual, gênero e cor, com consequências que vão de econômicas, psicológicas a fatais. Em favor de sua denúncia e de sua vontade de expressão sobre “o amor que não ousa dizer seu nome”, João Gomes nos convida a um revezamento, a um esforço. No próprio título esse convite em que somos instados a participar.
O hermetismo neste Revezamento secreto nos faz pensar. Há um poema de Murilo Mendes, “Murilograma a Nanni Balestrini” em que ele escreve: “Que é finalmente o poema :/ Palavra ou frase?/ Sem frase levanta-se palavra?” No jogo de chiaroscuro de João Gomes, a sugestividade das imagens, a falta de conectivos, a recusa de ligação são revezadas com o excesso de ligação, a ligação que muito mais desliga o sentido do que o aciona. Em suas composições, o poeta e o poema se mostram encarcerados na solidão: “Exigem cara palpável/ de rio passando na foz,/ uma sombra/ de sorriso entregue/ a lábio barco”. A palavra é desviada, fragmentada, cindida da frase e tudo em consonância com o tema e as revelações contidas em poemas que pedem segredo. João Gomes usa recursos de linguagem que vão da sugestão ao choque, não é raro encontrar o explícito em meio ao segredo: “Borraram teu arrimo,/ pôde vil fugir de ti/ o árduo bárbaro/ gatilho no cuzinho”. Como se ainda fosse um crime o que há tão pouco tempo deixou de ser, e em alguns países ainda o é, João Gomes fala da homossexualidade como se não pudesse falar. A heteronormatividade ainda domina a cultura. João Gomes afasta o véu opaco que cobre a vida de tantas pessoas, acende e apaga a luz e nos convida mais que para ver, para sentir. O que mais pode ser dito sobre o óbvio na contemporaneidade? Como é possível debater sobre a violência e a violação de direitos LGBTQIA+ nos dias de hoje? A crise da linguagem se instaura em vários níveis e ficam cada dia mais difíceis os acordos. Ainda há outro aspecto do segredo, tão caro à poesia: o poeta fingidor. Precisando dizer sem dizer, o poeta finge que diz e fingindo que diz, finge que não diz. Há um aspecto psicanalítico por toda a poesia de João Gomes neste livro: uma revelação dos vícios, dos sintomas psíquicos, dos sintomas do sexo como adição, dos desejos postos pelo eu-poético: “Serão prescritas/ dezenas de picadas/ à base de penicilina, / longo paliativo/ a um fim, pois vivo/ sem dura briga/ às manchas fátuas”. É revelação e esconderijo. Essa é a música que João Gomes toca, música de Hermes, inventor da lira.
*Anteriormente publicado como prefácio do livro Revezamento Secreto (Mirada,2025) de João Gomes.
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Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura, 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé (Caos e Letras, 2023)