por Felipe Duarte de Paula__
Entrelinhas
Repara a frente do verso.
Gêmeas, capa e contracapa
dispensam qualquer remendo.
Abrem-se livres, pois são
asas de uma ave vadia
a desnortear perspectivas
(no alto, embaixo, início, fim).
Enumerar as palavras
no caderno é exercício
árduo de caligrafia.
Um sem-número de imagens
colore o branco entre as linhas,
promove encontros na rígida
geometria das paralelas.
Remexe o varal das letras.
O movimento preciso
revela o que antes estava
camuflado sem disfarce:
conselhos, consolos, sonhos,
denúncias...diálogo aberto
que se guarda a sete chaves.
Último andar
Inunda o céu a invasão
desse voo vadio sem asas
de volteios fora do tempo
a trapacear a vertigem.
Fora de ordem e selvagens
são as aves que sequer
as mais hábeis artimanhas
mantiveram na gaiola.
Em silêncio, em liberdade
furam a fila das nuvens
e enganam sombras e luzes
no movimento sem freios.
Ao redor do último andar
vê o caminhar derradeiro
que prescinde de convite
pra lançar-se ao recomeço.
Faminto de novos ares
voa pra abocanhar o céu
pássaro infenso à censura
tecido de pensamento.
Oferenda
Da onda ao pé da praia,
recolho as relíquias do mar:
sigilo
deslumbrante encanto
pronúncia sincera de uma fé sem dogmas.
Preservo meus amuletos.
Quisera crer somente na força
das águas que os trouxeram,
banhados em luz e sal,
sutil religação do corpo ao mistério.
Algo estranho, porém, corta
minhas mãos, meus pés.
Fio afiado de faca
cravado nas costas da mansidão.
Em vão vasculho a areia:
misericórdia amor tolerância
estão enterrados tão fundo
que sequer a mais teimosa esperança
pode trazê-los à tona.
Os detritos e os dejetos
de uma deturpada devoção
soterram sem piedade
o que um dia foi oferenda.
*Felipe Duarte de Paula nasceu em 1987. Formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é promotor de justiça. Mora com a família em São Paulo. Em 2024, lançou o livro de poemas Vida selvagem, pela editora Patuá.