Feitiço para trazer o amor de volta | Germana Accioly

 por Germana Accioly | 



Minha mãe ensinava que em carne moída não se coloca água. Tem que deixar cozinhar com a umidade da própria panela, com o líquido dispensado pelos ingredientes, em fogo brando. Era um segredo passado ali, nas pequenas rotinas do cotidiano, quando eu, ainda adolescente, arriscava alguns desastres na cozinha. O primeiro feijão de grão duro e caldo ralo; a carne de panela que não tinha sabor de quase nada, o arroz “unidos venceremos”, a berinjela de forno que estraguei colocando “Caldo Maggi”. Eu era uma cozinheira apressada, não sabia ainda sobre um dos processos mais refinados da culinária: o respeito ao tempo dos ingredientes.

Ela falava displicentemente, como se não quisesse ensinar. Quando criança, adorava comer carne moída com torrada de pão francês. A receita da minha mãe não tinha caldo, mas era suculenta. Eu gostava de sentir a torrada sendo invadida pelo macio da receita dela.

Hoje fiz uma carne moída quase como quem prepara um feitiço para trazer o amor de volta. “Trago seu amor de volta em uma semana”, leio nos cartazes colados nos postes do Recife. Fico pensando no impacto da frase. Quem é a pessoa que não tem um amor perdido, deixado no meio fio, esquecido em uma mala, carimbado no passaporte ou escondido no fundo da alma?

A minha receita de bruxaria é mais simbólica, não tem intenção de materializar a pessoa amada. Eu só queria sentir minha mãe mais perto de mim. Logo ela, que ocupava tantos espaços, agora mora no meu vazio.

Segui o passo a passo da receita com calma, com parcimônia. Esperei degelar completamente, depois cuidei de cortar os ingredientes e temperar. Dei um toque vintage: cubinhos de batata inglesa cortadinhos cozinhando junto. Ela às vezes também colocava cenoura. Fogo brando.

Isso é sobre a saudade que a gente cozinha para virar lembrança, sobre como as memórias apuram depois de muito ferver no peito. É como se, ao evaporar, os sentidos fossem assumindo a forma de extratos poderosos. Um feitiço que busca colocar as coisas no lugar, mas, assim como o aroma que salta da mistura do cominho, da semente de coentro, da cebola e do tomilho, a saudade tem se espalhado pelo ar.

 

 


GERMANA ACCIOLY
, diretora de relações estratégicas e comunicação da Escola da Democracia, é jornalista, especialista em Política e Representação Parlamentar pelo CEFOR em Brasília e em Política e Cultura pela Agecif, Paris. É autora do Relatório dos Mandatos Ativistas no Brasil (2023). É cronista, publicou textos em diversas revistas e sites e lançou seu primeiro livro, “Não é Sobre Você”, em 2021. Participa da coletânea “Crônica Popular Brasileira”, ambos pela editora Mirada.