Travessia poética: conheça o processo criativo de Viviane Ka na escrita do livro Um Quarto em Cavala


Viviane Ka


Em entrevista, a autora fala sobre “Um Quarto em Cavala”, romance que contempla memória, mitologia e escrita para propor uma odisseia íntima e poética.


“Um Quarto em Cavala” é o novo romance de Viviane Ka, escritora paulistana que traz na bagagem uma trajetória dedicada à escrita e à representação das mulheres na literatura. Publicado pela editora Laranja Original, o livro propõe uma odisseia íntima e poética a partir da jornada de Vita, que, após um trauma, parte sozinha para a Grécia em busca de reinvenção e pertencimento. 


Escrito em fragmentos que mesclam diário de bordo, poemas, relatos oníricos e cartas, o romance se constrói na travessia — interna, simbólica, histórica. A estrutura híbrida reflete o modo como a protagonista, Vita, tenta reconstruir a si mesma a partir da ruptura: um assalto que a esvazia e provoca uma profunda sensação de desconexão. O gesto da partida é simultaneamente fuga e busca. Ao partir, juntando as economias que fez para morrer, Vita cumpre uma dívida consigo mesma: encontrar sua voz poética.


Viviane Ka é escritora, produtora editorial e foi fundadora do Eugênia Café Bar, espaço feminista que abrigava uma biblioteca de autoras e promovia rodas de conversa com escritoras e leitores. Publicou livros de poesia, prosa e não ficção, e já teve seus textos divulgados no Brasil e no exterior. Entre suas influências estão nomes como Hilda Hilst, Clarice Lispector, Patti Smith, Anne Carson e Maria Gabriela Llansol. Leia abaixo uma entrevista com a autora sobre o processo criativo que levou a criação de “Um Quarto em Cavala”. 



1. O livro “Um Quarto em Cavala” aborda temas como identidade, pertencimento e o deslocamento feminino. De que forma esses elementos se articulam na trajetória da personagem Vita e na estrutura narrativa da obra?


Em Um Quarto em Cavala um evento traumático na vida de Vita, habitante de uma cidade violenta, provoca uma ruptura, uma partida. Com o dinheiro que economizou para morrer, Vita atravessa um mar real e simbólico e aporta em Cavala, em um quarto à beira-mar. Em torno desse espaço, os  acontecimentos, encontros e memórias são registrados em poemas, diários de bordo e relatos de viagem, em uma íntima odisseia. Deusas e poetas gregas acompanham as descobertas filosóficas e engraçadas do deslocamento de Vita em busca da identidade perdida de uma mulher que pode ser muitas.


Um Quarto em Cavala é um livro sobre transformação e também sobre nossas dívidas existenciais. Também é sobre coragem, desejo, saúde mental, deslocamento, superação de medos, abertura, viagem solo, conhecimento de outras culturas, conexão entre mulheres, relação mãe e filha, sexualidade, mitologia, psicanálise, feminismo, pertencimento, identidade. Viagens poéticas e escrita. É sobre memória, é sobre uma odisseia íntima. 


2. O que te motivou a abordar estes temas? 


A mulher sempre foi o tema central de minhas pesquisas. Fui dona de um bar feminista em São Paulo, o Eugênia Café Bar, que tinha uma biblioteca composta por livros escritos por mulheres e promovi muitas rodas de conversa. Então sei da força das protagonistas mulheres. Gosto do tema da mulher que desbrava, que supera. E que vive as coisas com um olhar poético, descristalizado. Que vive pequenas odisseias e jornadas transformadoras. Eu me identifico no quarto como cenário de viagens interiores, como espaço da escrita. O quarto tem aparecido bastante como tema atual, tanto no novo livro da Miranda July, como no último filme de Almodóvar. O quarto é um tema de aprofundamento interessante. Mulheres precisam cavar um lugar para exercer o trabalho de escrita. O quarto é refúgio e expansão.


3. Como surgiu a ideia de escrever “Um Quarto em Cavala” durante sua residência na Grécia, e como esse contexto influenciou a intensidade e o ritmo do seu processo criativo ao longo de um ano?


Escrevi “Um Quarto em Cavala” em uma residência artística na Grécia, com o objetivo de mudar de paisagem e escrever deslocada de todas as referências. E ter o tempo da escrita, entrelaçando experiências, memória e liberdade para ficcionalizar. Sair do cotidiano, conhecer outras realidades e línguas. Foi muito interessante estar em um ritmo de escrita diário, esquematizar um projeto, escrever ao menos três páginas por dia. Estar junto de outros artistas trabalhando foi fundamental para entrar nesse ritmo cotidiano. Cobrava de mim uma produção diária, sem procrastinação. Escrevi o livro em um ano, trabalhei todos os dias da semana por muitas horas, fiquei obcecada em ter um começo, meio e fim. 



4. Que reflexões você espera despertar no leitor a partir da jornada da personagem Vita?


Que sempre vai existir uma faísca que desperta um desejo, no meu caso foi o desejo de escrever. A pergunta que fica é: o que devemos a nós mesmos? Uma viagem, uma realização, um apartamento? Meu livro fala, de forma poética, em como podemos abrir uma janela em nossas vidas e olhar para fora de nossos limites. 


6. Que impacto pessoal “Um Quarto em Cavala” teve na sua trajetória? Em que medida a escrita desse livro foi, para você, uma travessia simbólica ou uma forma de transformação?


A escrita desse livro me transformou, me vi capaz de atravessar um oceano (real e simbolicamente). Terminar um projeto, colocar um livro em pé, é uma grande conquista. E permanecer aberta à escuta, a viver coisas novas, que podem ser surpreendentes. Escrever é uma forma de dominar a ansiedade. Perder-se é fundamental, perder o controle é uma forma de abrir-se ao sobrenatural da escrita, é um ponto de partida. Esse livro representa a liberdade de uma mulher, no caso a personagem Vita e, ao mesmo tempo, demandou muita pesquisa e muito estudo. Me fez conhecer muitas coisas e querer conhecer cada vez mais. Me transformou muito, me fez ter disciplina e loucura, pois é também um livro sobre a loucura, sobre a perda e o ganho de uma nova identidade.


7. Como as experiências adquiridas em livros anteriores contribuíram para a construção narrativa e estrutural de “Um Quarto em Cavala”?


Cada livro escrito é uma aprendizagem para o próximo. Cada vez que me aproximo da escrita aprendo mais um pouco como é desenvolver um projeto, estruturar uma ideia. Agora, no novo projeto que venho trabalhando, busco cada vez mais a claridade das palavras, a sinceridade comigo mesma. Gosto da escrita sincera, que não quer dizer compromisso com a verdade, mas sim uma escrita comprometida com o projeto, com as palavras que pertencem a ele.


8. O que te motivou a estruturar o livro a partir da mistura de gêneros como diário, poesia e prosa? De que forma essa escolha dialoga com a tua maneira habitual de escrever e com a experiência que desejava proporcionar ao leitor?


Para “Um Quarto em Cavala”, definir um gênero não dá conta de tudo. É um romance, mas tem outros recursos como diário de bordo, memórias, relatos de viagem e poemas, que criam uma ambiência e se entrelaçam para contar uma história. Tem a prosa dentro da poesia, como recurso textual. Fernando Pessoa diz que em prosa é mais difícil se outrar.


9. Quais autoras e autores te inspiraram diretamente na construção de “Um Quarto em Cavala”, e como essas influências se refletem na linguagem e nos temas do livro?


Gosto de escritoras como Hilda Hilst, Clarice Lispector, Marguerite Duras, Maria Gabriela Llansol. Patti Smith, que conta sua história de uma maneira muito poética e natural, que me toca profundamente. Gosto muito da Anne Carson, me identifico muito com seu livro Autobiografia do vermelho, que também usa ensaio, prosa e poesia para recontar a história de uma personagem da mitologia grega. Gosto da escrita da Rosa Montero e do Nelson Rodrigues. Da poesia da escritora argentina Maria Negroni, da Sophia de Mello Breyner, da Mar Becker, Isadora Krieger, Ana Maria Martins. 


10. Como você descreveria seu estilo de escrita, especialmente em “Um Quarto em Cavala”, e de que forma elementos como mitologia, poesia e o insólito estruturam a narrativa?


Gosto muito da presença do sobrenatural, do inesperado nos textos. Gosto de elementos naturais como animais e fantasmagorias, que provoquem uma ruptura, um susto, uma nova geografia.


Para escrever Um Quarto estudei muito os poetas e dramaturgos gregos, isso foi bastante interessante, quando um tempo nos leva a nos aprofundar em um assunto e é um estudo infinito, uma obra puxa a outra. Os capítulos deste livro me levaram à Medeia, Antígona, Pandora e a tantos filmes, é muito bom e também muito enlouquecedor mergulhar no espaço da escrita.


11. Quando a escrita começou a fazer parte da sua vida de forma consciente? 


Escrevo desde que aprendi a escrever. Lembro que deixava bilhetes pela casa para meus pais, montava livros de família, estava sempre lendo. A escrita sempre foi meu trabalho. Escrevo para não esquecer as fases que passei.


12. Você tem algum ritual de preparação para a escrita? 


Sim, sempre tem um ritual. Gosto sempre de ler um pouco de poesia antes de começar a escrever. Acendo uma vela, gosto de trabalhar de noite, no silêncio, quando é o movimento de soltar o texto. Anoto muitas coisas no celular, em vários cadernos diferentes, em folhas soltas. Durante o dia, o trabalho é organizar esse material.


13. Quais projetos de escrita estão em andamento atualmente? Como eles se relacionam com temas que você já explorou em obras anteriores, como memória, identidade e figuras femininas?


Estou escrevendo um livro sobre minha avó, uma mulher à frente de seu tempo,o cenário é a cidade de Santos. Para escrever esse texto, tenho feito uma imensa pesquisa sobre fotografia de família, sobre o que é escrever na pele de uma imagem, sobre a morte como movimento da história. Os mortos pedem que quem fica mova-se, me sinto impelida a contar essa história que me pede uma vitalidade. Também estou trabalhando em um novo livro de poesia. E em uma biografia de uma cantora brasileira.