por Davison da Silva Souza |
Nascida nas Laranjeiras, distrito de Banabuiú, no sertão cearense, onde tudo era longe… Sua casa de taipa ficava à beira de uma estrada de terra batida, pertinho de um riacho. Maria tinha longos cabelos crespos, macios como as nuvens, pele preta da cor da noite e olhos castanhos como as castanhas do caju. Todo dia de manhã, ela ouvia o canto do bem-te-vi; ao abrir os olhos, avistava o sol adentrando pela fresta da telha, incandeando suas vistas. Ao acordar Descia da rede, calçava as alpargatas e logo dava um cheiro na mãe, que dizia:
— Deus lhe dê furtuna, Maria.
Maria era a filha caçula de doze irmãos, todos homens. Não frequentou a escola, pois a mais próxima ficava a cento e vinte quilômetros de distância. Além disso, seu pai, João Filício, repetia constantemente que mulher não devia estudar, mas sim cuidar da casa, casar e ter filhos. Atrevida, Maria retorcia a cara, mas num era nem doida de responder ao pai. Apenas discordava em silêncio.
Curiosa que só, Maria observava o ofício dos irmãos. Aprendeu a entalhar madeira, cortar couro, plantar uma roça, fazer cangaia de jumento, cuia, cabaça e até latas de madeira para armazenar água. Cresceu com as ferramentas nas mãos, sempre distante da cozinha — lugar que diziam ser espaço de mulher — e insistindo que ela era mulher de verdade. Seu espaço preferido era a oficina, localizada nos fundos de casa. Lá, recebia viajantes, fazia consertos, ajeitava uma coisa aqui, outra ali, enquanto ouvia no rádio do pai as canções de Fernando Mendes.
Um dia, Dona Menina apareceu. Mulher vivida, de longos cabelos escuros como a plumagem da graúna, pele preta-brilhante como o sol e um sorriso tão bonito que, no espaço entre os dentes, parecia caber a felicidade do mundo inteiro. Dona Menina era sua vizinha — uma viúva com treze filhos que morava “pertinho”, apenas cinquenta quilômetros dali. Chegou ofegante, escorou-se na porta da oficina, colocou os braços sobre a parte de baixo da porta, que era dividida horizontalmente, meteu a cabeça pra dentro e gritou:
— Ôh de casa!
O grito cortou “A desconhecida” que tocava no rádio, como o vento corta o canto dos pássaros. Maria, surpresa, correu até a porta, avistou a bela viúva, sorriu charmosamente e respondeu:
— À disposição!
Dona Menina sorriu encabulada e perguntou se Maria Amélia consertava lata de armazenar água, porque a sua, toda de madeira, tinha quebrado o fundo. Amélia logo retrucou:
— Conserto, sim, senhora. Nessa oficina só não dou jeito em espinhela caída e mau-olhado; de resto, ajeito tudo.
Dona Menina, sorridente, quis saber quanto custava o serviço. Sem pensar muito, Amélia respondeu:
— Só quinze conto, dona Menina.
Assustada com o preço, a viúva logo procurou uma forma de baratear o conserto e disse:
— E se eu lhe der o fundo?
Maliciosamente, Maria Amélia deixou que os pensamentos corressem pela boca, soltando-se pela língua. Com um sorriso, respondeu:
— Se a senhora me der os fundos, eu conserto sua lata e ainda vou no açude encher de água.
E foi assim que Dona Menina saiu rindo, toda encabulada, sem saber se tinha ganhado o conserto ou levado uma cantada. Já Maria Amélia, com sua língua ligeira e afiada como navalha, ficou sendo comentada por todo o sertão: “Aquela que conserta lata, mas só se ganhar os fundos”.
-------
GLOSSÁRIO CEARENCÊS
Taipa: Construção feita de barro e madeira, comum no sertão nordestino.
Rede: Móvel de descanso feito de tecido ou cordas, pendurado entre dois pontos fixos.
Alpargatas: Sandália simples de lona ou couro.
Adentrando: entrar em um recinto
Deus lhe dê furtuna: Benção comum, desejo de sorte e prosperidade.
Cangaia: Estrutura de madeira ou couro usada para carregar peso em jumentos ou burros.
Cuia: Recipiente feito da casca do coco, usado para beber ou armazenar líquidos.
Cabaça: Fruto seco e oco, utilizado como recipiente ou utensílio doméstico.
Espinhela caída: Expressão popular para um mal-estar ou fraqueza física atribuída a causas sobrenaturais.
incandeando: quando sol bate nos olhos e fica difícil de olhar
Mau-olhado: crença popular de que o olhar invejoso pode causar azar ou doença.
Graúna: Pássaro negro típico do sertão nordestino.
Quinze conto: Maneira popular de se referir a quinze reais (ou, antigamente, a quinze cruzeiros ou cruzados).
Encabulada: Envergonhada, acanhada.
Filho do seu José e da dona Maria, me chamo Davison da Silva Souza, mais um Silva, da periferia de Fortaleza. Mestre em Educação e Ensino (Maie-Uece), professor-alfabetizador da Rede Municipal de Ensino de Fortaleza, ilustrador, cronista e andarilho da imaginação.
Redes Sociais