Aproximações à Técnica contemporânea – o “Ereignis” em Heidegger

 por Luís de Barreiros Tavares | 


“Génese” – Acrílico, spray e esmalte sobre tela, 42 x 55 cm — 1998 — © Luís de Barreiros Tavares

Poeiras da Filosofia VII

 

Für die Götter kommen wir zu spät und zu früh für das Seyn. [Vimos tarde demais para os Deuses e cedo de mais para o Ser.]

Martin Heidegger

 

— Esse Andróide, ao qual, insisto, posso conferir uma aparência humana perfeita, é dotado de uma memória electroquímica que funciona segundo os mesmos princípios do cérebro (Prof. Sato). — Electrónica e Química… A síntese do futuro! (Mortimer)… […] À voz de Sato, o andróide deteve-se de imediato… — Ozu está às ordens do Sensei (Andróide)… — By Jove! Isto é magia!! (Mortimer)… — Não, é uma judiciosa combinação de electrónica, química e física (Sato)…

Edgar P. Jacobs, As 3 fórmulas do Prof. Sato (1ª parte) — 1970 — “Aventuras de Blake e Mortimer” (Banda desenhada)


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A tecnologia produz um efeito de tipo mágico (porque mito e magia atravessam-nos deste a noite dos tempos): é a impressão de que dispomos do tempo, a começar pelo tempo dito presente. O sentimento — se assim se pode dizer, o que é mais provocatório — de apropriação, pela técnica, do real e do presente. Uma espécie de poder de dominação a partir do objecto técnico e seus mais perigosos “agenciamentos” (conceito de Deleuze e Guattari).

Ter o poder nas mãos, na verdadeira acepção da palavra. Mas é um equívoco. Actualmente, e a palavra “actual” tem aqui um especial alcance — e com o novo poder de desdobramento com o chamado virtual técnico do em tempo-real, na esteira dos “simulacros” e do “hiper-real” (Baudrillard) —, o domínio da técnica adquiriu novos contornos. É a condução quase total dos nossos gestos, consequência da técnica, ela mesma levado a um expoente elevado. E não dizemos “expoente máximo”, pois estaríamos de novo a cair na ilusão do máximo presente exclusivo que tendemos a assumir como nosso: o dito tempo dos “nossos dias”.

Esse domínio da técnica, a par do grande capital e do chamado neoliberalismo, faz com que os novos hipermagnatas mantenham um poder maximamente hegemónico, cuja técnica já lhes é inerente, geneticamente falando (o tal calão do ADN que se supõe estar no espírito e no animismo desses senhores). Trump, milionário, agora no leme da política global, e também Putin que, ao que consta, se não é o mais rico, é um dos mais ricos do mundo.

A impressão que se tem é a de que o mundo, o planeta, caminha mais do que nunca por si independentemente da sua rotação e translação. Esta é a duplicação, em miragem, do mundo. Ele automove-se, num caminho que até ultrapassa os grandes magnatas de hoje, embora eles pensem que detêm o controlo dos acontecimentos.

Um dos exemplos mais flagrantes é o negacionismo climático (negação das alterações climáticas sob o efeito do Antropoceno). Do ponto de vista destes lunáticos, a coisa vai já vai mais longe, pelo caminho de uma ponte com o espaço interplanetário (Elon Musk quer fundar uma cidade em Marte: “Terminus”, não esquecendo os seus planos de imortalidade digital — preservação de memórias e pensamentos humanos em robots no futuro), salvaguardando-se, supostamente, o humano, ou alguns humanos privilegiados, dos grandes colapsos terrestres que parecem estar para vir.

Há a intenção de dominar o tempo e o real, enfim, o presente a todos os títulos. Daí também o prolongamento da vida, a par de uma fabricação do humano optimizado. É o chamado enhancement (melhoramento) transhumanista hoje tão debatido (sobre a complexidade destas questões, leia-se o excelente livro Experimentum Humanum, do sociólogo e pensador Hermínio Martins (1934-2015), que me concedeu uma entrevista na revista Caliban). Martin Heidegger já tinha chamado a atenção para esta realidade com uma antecipação pensada com extrema agudeza. É aí que o pensador alemão nos fala do Ereignis (das Ereignis – evento, acontecimento…) enquanto algo que poderá ser inaudito, mas em aberto (ler em baixo parte da entrevista concedida por Heidegger a Richard Wisser). Não nos esqueçamos nunca dos possíveis imprevistos do tempo e de acontecimentos incontrolados pelo aparente controlo total ou quase total.

Segundo Heidegger, perante as possibilidades do pior, tendo em conta o curso dos acontecimentos, o acontecimento ou evento mais crucial, o Ereignis, pode ser — enquanto evento! — algo (“acontecimento de apropriação” — ver na entrevista) que irrompe como definitivamente novo e promissor, a ver, mas que não dominamos nem poderemos prever. Daí a condição possível, sempre em aberto também, para o revés, para o descalabro no horizonte de possibilidades. Eis um traço, digamos assim, do impasse lançado do “Ser-no-mundo” (In-der-Welt-sein), para lembrar Sein und Zeit (Ser e Tempo), de 1927, a obra mestra do pensador alemão.

Talvez seja isto o que poderemos perceber — ou pensar —, quando Heidegger profere: “Vejo, contudo, na essência da técnica [que não é o mesmo que apenas ”técnica”, segundo o filósofo] a primeira aparição de um segredo muito mais profundo que denomino Ereignis.” Segue-se a leitura de um extenso extracto da mencionada entrevista (na tradução para português do Brasil por Antônio Abranches — respeitando a grafia).


Fotografia — detalhe — “Fundo de céu ao pôr do sol” — © Luís de Barreiros Tavares

“No que concerne à técnica, minha definição de essência da técnica, que até agora não foi aceita em parte alguma é — para dizê-lo em termos concretos —, a de que as modernas ciências da natureza se fundam no quadro de desenvolvimento da essência da técnica e não o contrário. Eu devo dizer, de início, que não sou contra a técnica. Jamais falei contra a técnica e tampouco contra o que se chama carácter «demoníaco» da técnica. Mas tento compreender a essência da técnica. Quando o Sr. evoca essa idéia do perigo representado pela bomba atômica e do perigo ainda maior representado pela técnica eu penso naquilo que hoje se desenvolve sob o nome de biofísica, no facto de que, dentro de um tempo previsível nós estaremos em condições de fabricar o homem, quer dizer, construí-lo em sua própria essência orgânica, tal como ele se fizer necessário: homens hábeis e inábeis, inteligentes e estúpidos. Vamos chegar lá! As possibilidades técnicas estão hoje a ponto de fazê-lo e elas já foram objeto de uma comunicação de alguns prêmios Nobel numa reunião em Lindau — sobre esse assunto eu já falei numa conferência pronunciada em Messkirch, há alguns anos [em rodapé: “Conferência intitulada «Gelassenheit, Sérénité», em Questions III, p. 161”].

Então: é preciso, antes de tudo, evitar o mal-entendido segundo o qual eu seria contra a técnica [itálicos nossos].

Na técnica, a saber, em sua essência, eu vejo que o homem é posto sob o domínio de uma potência que o leva a relevar seus desafios e diante da qual ele não é mais livre — vejo que algo se anuncia aqui, a saber, uma relação entre o Ser e o homem — e que essa relação, que se dissimula na essência da técnica, poderia um dia desvelar-se com toda a clareza.

Não sei se isso acontecerá! Vejo, contudo, na essência da técnica a primeira aparição de um segredo muito mais profundo que denomino Ereignis [em nota de rodapé: tradução possível de Michel Haar: “Acontecimento de apropriação”]. Donde o Sr. pode deduzir que não se trata absolutamente de uma resistência à técnica ou de sua condenação. Porém, trata-se de compreender a essência da técnica e do mundo técnico. Na minha opinião isso não pode ser feito enquanto nos movermos no plano filosófico, dentro da relação sujeito-objecto.”

Entrevista concedida a Richard Wisser em 24 de setembro de 1969. Canal 2 da televisão alemã ZDF, por ocasião do seu octogésimo aniversário. Tradução de Antônio Abranches. Ligação PDF e YouTube.

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Post scriptum

Recuo um passo ante / alguém que não está ainda aí, e inclino-me, antecipadamente um milénio, / perante seu espírito. [Ich trete vor / Einem zurück, der noch nicht da ist, und beuge mich, ein Jahrtausend im / Voraus, vor seinem Geiste.]

 

Heinrich von Kleist (citado por Heidegger no final da entrevista) — tradução nossa



Martin Heidegger – 1889-1976


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Entrevista na íntegra

file:///C:/Users/Wincash/Documents/OQNFP_10_01_03_martin_heidegger.pdf

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Vídeo: parte desta entrevista neste documentário — “Martin Heidegger: En chemin dans la pensée”, 1975

https://www.youtube.com/watch?v=G65KjGOXNcg&ab_channel=PrNeix


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Poeiras da Filosofia VI: A Filosofia…? — O que é…? (com ligação às publicações anteriores)

https://revistacaliban.net/a-filosofia-o-que-%C3%A9-33a3075124ba

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Entrevista concedida a Luís de Barreiros Tavares

Hermínio Martins — Experimentum Humanum





Luís de Barreiros Tavares
nasceu em Lisboa em 1962 e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa (2007). Autor de alguns livros, entre outros: O Acto de Escrita de Fernando Pessoa; Em Roda Livre, com Eduardo Lourenço; Sulcos, com Jean-Luc Nancy; 5 de Orpheu (Almada — Amadeo — Pessoa — Santa Rita Pintor — Sá-Carneiro). Colaborador regular nas revistas “Nova Águia”, “Caliban”, “Triplov”, “Mirada (Br)”. Publicações nas revistas “Comunicação e Sociedade” (CECS – UMinho), “Comunicação e Linguagens” (CECL – UNL), “Pessoa Plural — Brown university”, “A Ideia”, “Philosophy@Lisbon” (CFUL – UL), ”Zunái (Br)”, “Suplemento acre (Br)”, “Grou Cultura & Arte (Br)”, etc. Vice-diretor da revista “Nova Águia”. Membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono (MIL). Editor das edições-vídeo “Passante”. De um modo cifrado, mantém-se artista plástico. Já deu umas aulas. Responsável pelo espólio do poeta Manoel Tavares Rodrigues-Leal.