Clara Velloso Borges transforma o mito de Penélope em poesia sobre o cotidiano e a liberdade feminina

 por Taciana Oliveira | 



Clara Velloso Borges transforma o mito de Penélope em poesia sobre o cotidiano e a liberdade feminina

Uma mulher acorda, pega o celular, trabalha, se apaixona, fracassa e recomeça — e, nesse ciclo de 24 horas, reinventa o próprio mito. Em Penélope (Editora Caos e Letras), a escritora paraibana Clara Velloso Borges transforma a rotina contemporânea em itinerário poético, revisitando sob nova luz a figura clássica de Penélope, agora ativa e inquieta, que ao invés de esperar, decide viver. Com estrutura que acompanha o passar das horas — das seis da manhã às onze da noite —, cada poema revela tensões, desejos e descobertas que condensam, em um único dia, toda uma vida. Entre sonetos e versos livres, a autora imprime ritmo e musicalidade, inspirando-se em referências como Sophia de Mello Breyner Andresen, Augusto dos Anjos, Kafka e Caetano Veloso. Professora, advogada e mestre em Estudos Literários pela UFMG, Clara alia precisão estética à sensibilidade do cotidiano, transformando pequenos gestos em matéria poética. Além do novo livro, ela é semifinalista do prêmio Livros do Futuro, promovido pelo TikTok, com o inédito O Último Samba de Carmen Miranda, e prepara um volume de crônicas pelo Selo Off-Flip.

Nesta entrevista, Clara fala sobre o processo de criação de Penélope, suas influências, o diálogo entre mito e modernidade e o desafio de transformar o trivial em literatura.

1. O que a motivou a revisitar o mito de Penélope e dar a ele uma nova perspectiva, na qual a personagem não espera mais por Ulisses, mas decide viver sua própria jornada?

A motivação se relaciona com a busca por uma representação mais genuína do sujeito contemporâneo. O título “Penélope” tem a licença poética dos ecos de “Ulisses”, de James Joyce, cuja narrativa condensa o cotidiano no microcosmo de um único dia. É essa mesma lógica que me orienta. Uma Penélope no século XXI não poderia se apresentar com espera passiva pela volta de Ulisses, porque ela mesma forja seu destino.

Essa visão ressoa profundamente o soneto que leva o nome do livro, em que a virtude da paciência, talvez o mais clássico dos traços atribuídos a Penélope, é repensado: “De todas as virtudes, paciência. / Só não espero que nada a mim volte. / Ao costurar sobre alheia ausência, / aguardo que a novidade me escolte.”

2. A estrutura do livro acompanha as horas de um único dia. Como surgiu a ideia de transformar essa rotina diária em uma metáfora de toda uma vida?

Eu acredito que o cotidiano pode ser uma grande jornada. Costumo brincar que só não gosta de rotina quem tem uma rotina ruim. A ideia de transformar um dia em metáfora da vida inteira veio da necessidade de atribuir uma forma mais cartesiana à coletânea de poemas.

“Penélope” começou com um poema solto, lá em 2017. Depois, foram chegando outros versos, ano após ano, em um ritmo demorado, porque a correria da vida de jovem adulta me tirava um pouco a poesia, fazia com que eu olhasse pedra e visse pedra mesmo, parafraseando Adélia Prado.

Em 2023, a editora Caos e Letras abriu uma chamada para originais. Enquanto selecionava os poemas, surgiu essa ideia de organizá-los de acordo com as horas do dia. Alguns poemas expressam diretamente essa cronologia, como nos versos “Não muda quando dá perto das cinco: / nessa hora, eu me sinto um ornitorrinco.” Esses são os mais recentes, que foram escritos pensando no que hoje é “Penélope”, embora todos, de alguma forma, expressem uma preocupação em capturar o instante em que o sentimento arrebata.

3. Sua obra tem forte preocupação com a musicalidade dos versos. De que forma a música influencia sua escrita e quais referências sonoras dialogam com Penélope?

A musicalidade é um dos pilares da minha escrita poética. É Ezra Pound quem molda minha percepção sobre o tema. Assim como ele, acredito que quando a poesia se afasta da música, vai deixando de ser poesia e virando prosa.

Gosto de trabalhar com métrica e rima como formas de ampliar as possibilidades sonoras do texto literário. Não são amarras, já que também exercito a poesia em versos brancos e livres, mas são chaves poéticas importantes para minha produção.

A música influencia minha escrita porque, muitas vezes, ela carrega a mesma sensibilidade que a poesia, mas alcança públicos maiores. O verso poético requer uma atenção mais exclusiva, exige um certo recolhimento e um tempo dedicado apenas à leitura da poesia. Já a música é mais cotidiana e simultânea, nos acompanha sempre que estamos distraídos.

4Você cita Sophia de Mello Breyner Andresen, Augusto dos Anjos e Kafka entre suas influências. Como essas vozes se entrelaçam em sua poesia e no processo de criação deste livro?

Sophia de Mello Breyner Andresen foi uma influência direta, porque ela também volta os olhos para a figura de Penélope quando imagina emoções complexas. De Kafka e de Augusto dos Anjos, meu poeta favorito, herdo o gosto pelo estranhamento. A poesia ganha um charme maior quando flerta com o insólito.

5Publicar Penélope foi também organizar poemas escritos ao longo de vários anos. Como foi esse processo de costurar versos de tempos diferentes em uma narrativa contínua e orgânica?

Escrever, para mim, é tão mágico quanto cansativo. É uma tentativa de reorganizar meu âmago, embora às vezes o bagunce ainda mais. Nesse sentido, concordo com a reflexão da escritora Olga Tokarczuk: “Quando escrevemos, tentamos restaurar nosso equilíbrio, a libido se enrosca em volta de si própria, e de repente nós nos envolvemos em uma ternura ainda desconhecida.”

Costurar esses versos de épocas distintas foi uma tentativa de transformar a imprevisibilidade dos instantes em um movimento coeso. Reflete a minha necessidade de organização cognitiva, que talvez seja uma ilusão de controle sobre um caos interior. Eu escrevo para me desemaranhar. 



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Poemas do livro:


E agora, que estou aqui

 

Fiz conta em ábaco, quebrei o cofrinho,

analisei rotas em GPS,

acendi vela, roguei uma prece,

só para seguir por este caminho.

 

E agora, que estou aqui, o fio d'água

segue em hidrogênio e em oxigênio.

Sequer me molha mais por convênio,

nem escorre menos salgado em mágoa.

 

Se, por aqui, passasse um panapaná,

eu, mesmo largata, me esticaria.

Então você, arguta, indagaria:

 

Não era aquele o rumo, tão teu, e pra já?

E já esvoaçando, de asa meio em pé,

digo que sim, foi, e voo para onde agora é.

 


 

Penélope

 

De todas as virtudes, paciência.

Só não espero que nada a mim volte.

Ao costurar sobre alheia ausência,

aguardo que a novidade me escolte.

 

Mesmo o que já foi ainda está comigo,

é o fio da linha que tece a colcha,

ornamentando o que já foi antigo,

para não deixar memória frouxa.

 

Até se voltasse, iria variar,

como mudam os heróis das jornadas.

O dedo enroscado em roca de fiar

 

é o mesmo que se rasga nas espadas.

Nada há de voltar, pois ainda se farão.

De todos os fenômenos, criação.


 

Diariamente

 

Todo dia, eu te quero toda sexta,

pra dizer qualquer coisa meio besta,

que é tudo o que eu sei: você me flutua.

Tremulo ao vento, sem tocar a lua,

 

mas se o que me eleva é teu endereço,

eu viraria a lua pelo avesso e

rosa alguma me faria especial.

Só perdi tempo com rosa em teu quintal.

 

Todo dia, eu te quero todo dia,

desafiando a sorte, astros, magia...

Todo dia em que eu te amo é feriado.

 

Calendário maia estava errado.

O fim do mundo só vai acontecer

todo dia, quando eu não puder te ter.



 


Clara Velloso Borges nasceu em João Pessoa (PB), em 1999. É escritora, professora e advogada, com mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e graduação em Letras e Direito. Autora de “Penélope” (Caos e Letras, 2025), foi premiada com o 1º lugar na categoria Crônica da Antologia Terra, do Selo Off-flip. Seu trabalho literário transita entre a prosa e a poesia, marcado pela atenção à linguagem e à musicalidade do verso.




Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.