por Taciana Oliveira |
Não há idealizações: a autora expõe suas fragilidades, culpas, fé vacilante e até mesmo pensamentos inconfessáveis, mas é justamente essa honestidade que aproxima o leitor de sua experiência. A escrita é atravessada por momentos de poesia e espiritualidade, mesclando referências literárias e culturais, de Virginie Despentes a Annie Ernaux, com orações, cânticos e lembranças íntimas. O resultado é uma narrativa que transita entre lágrimas e lampejos de humor, entre a escuridão do luto e a busca pela transcendência.
O livro alterna relatos íntimos, reflexões existenciais e passagens revelando tanto a luta do filho quanto a forma que a autora lidou com o chamado “luto antecipatório”. Em um tom confessional, Marina registra suas memórias compondo um mosaico de dor e amor. Embora nasça de uma experiência de perda, a obra se notabiliza como um tributo à vida e ao vínculo entre mãe e filho, além de um exercício de sobrevivência pela escrita.
Compre o livro: clica aqui
Trecho do livro:
O luto deixa tudo em suspensão. O luto escancara o tédio, ao mesmo tempo em que faz experimentar uma hiperconsciência, uma lucidez à flor da pele quase como um superpoder capaz de captar os pensamentos das pessoas ao redor e de antecipar palavras, gestos e ações — como posso me beneficiar disso? O que sobra, quando tudo é revestido de morte e a espera pelo desconhecido é um suspense perturbador? A vida se torna transitória. Impossível fazer planos de longo prazo. Impossível fazer planos. É sobreviver um dia de cada vez, como o lema de vários grupos de apoio: “mais um dia”. Mas esses grupos, em geral, referem-se às vitórias diárias longe das drogas, por exemplo, contabilizam os dias sem drogas. Cada dia sobrevivido sem o Leon não pode ser considerado uma vitória na perspectiva desses grupos de apoio. É uma vitória no sentido que se sobrevive a despeito de uma injusta (e definitiva) mutilação. É uma derrota porque não conseguimos mantê-lo vivo para gozar dos dias conosco. O tempo é abundante, lento, mordaz. E se eu fizer padecer o corpo para descansar a mente? Dar uma trégua à mente. Eu queria um trabalho em tempo integral, um trabalho alienante onde não soubessem quem eu sou, onde eu fosse invisível, um trabalho que me cansasse as pernas a ponto de eu quase desmaiar no caminho para casa, sentir a máxima dor física para aplacar a dor da alma. Se eu tivesse dinheiro, faria uma cirurgia plástica dos olhos ao dedão dos pés. Acho que vou fazer uma tatuagem. E agendar a retirada da vesícula, onde foi diagnosticada uma pedra no final do ano passado.
A partir de agora, nada mais importa… os planos para o futuro, a moral, os moralismos, a beleza, a velhice, as ilusões, o autoconhecimento, o alívio das angústias, as mentiras que criamos para viver de modo seguro e sereno, o desejo de ser amada, respeitada e admirada, a irracionalidade das paixões, o medo da solidão, os outros, os apetites dos outros, a fragilidade da vida, o milagre da existência, a grandeza do universo, a força da natureza, a falta de controle, a entropia, o caos. O pior que poderia acontecer já aconteceu, “o mundo é um moinho”. Ter o meu bem mais precioso roubado pela morte me faz renascer e encarar a mim e ao mundo sem máscaras, do jeito mais autêntico possível.
NOTAS DA MAMÃE MORRENTE, de MARINA LIMA
Editora Reformatório/Pasavento
Romance autoficcional
ISBN 978-85-68222-52-2
192 páginas
R$ 55,20
Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.



Redes Sociais