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Notas da Mamãe Morrente, de Marina Lima

 por Taciana Oliveira |


Notas da Mamãe Morrente (Pasavento, 2024), Marina Lima transforma a experiência do luto em uma narrativa de rara intensidade e coragem. O romance autoficcional acompanha a trajetória de Leon, seu filho, de apenas um ano e meio de vida, que enfrenta, um longo processo de intubações, hemodiálises, transplantes e complicações até falecer.

Dividido em capítulos que dialogam com as fases do luto descritas por Elisabeth Kübler-Ross — negação, revolta, barganha, depressão e aceitação —, o livro articula relato pessoal, reflexão filosófica e escrita literária para dar forma a dor. A autora acrescenta ainda dois capítulos — “a esperança” e “o transplante” —, mostrando como a experiência do luto não é linear, mas um fluxo caótico e contraditório. O texto impressiona pela franqueza com que Marina narra tanto a luta do filho quanto o processo íntimo de se reinventar diante da ausência.


Não há idealizações: a autora expõe suas fragilidades, culpas, fé vacilante e até mesmo pensamentos inconfessáveis, mas é justamente essa honestidade que aproxima o leitor de sua experiência. A escrita é atravessada por momentos de poesia e espiritualidade, mesclando referências literárias e culturais, de Virginie Despentes a Annie Ernaux, com orações, cânticos e lembranças íntimas. O resultado é uma narrativa que transita entre lágrimas e lampejos de humor, entre a escuridão do luto e a busca pela transcendência.


O livro alterna relatos íntimos, reflexões existenciais e passagens revelando tanto a luta do filho quanto a forma que a autora lidou com o chamado “luto antecipatório”. Em um tom confessional, Marina registra suas memórias compondo um mosaico de dor e amor. Embora nasça de uma experiência de perda, a obra se notabiliza como um tributo à vida e ao vínculo entre mãe e filho, além de um exercício de sobrevivência pela escrita.




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Trecho do livro:


O luto deixa tudo em suspensão. O luto escancara o tédio, ao mesmo tempo em que faz experimentar uma hiperconsciência, uma lucidez à flor da pele quase como um superpoder capaz de captar os pensamentos das pessoas ao redor e de antecipar palavras, gestos e ações — como posso me beneficiar disso? O que sobra, quando tudo é revestido de morte e a espera pelo desconhecido é um suspense perturbador? A vida se torna transitória. Impossível fazer planos de longo prazo. Impossível fazer planos. É sobreviver um dia de cada vez, como o lema de vários grupos de apoio: “mais um dia”. Mas esses grupos, em geral, referem-se às vitórias diárias longe das drogas, por exemplo, contabilizam os dias sem drogas. Cada dia sobrevivido sem o Leon não pode ser considerado uma vitória na perspectiva desses grupos de apoio. É uma vitória no sentido que se sobrevive a despeito de uma injusta (e definitiva) mutilação. É uma derrota porque não conseguimos mantê-lo vivo para gozar dos dias conosco. O tempo é abundante, lento, mordaz. E se eu fizer padecer o corpo para descansar a mente? Dar uma trégua à mente. Eu queria um trabalho em tempo integral, um trabalho alienante onde não soubessem quem eu sou, onde eu fosse invisível, um trabalho que me cansasse as pernas a ponto de eu quase desmaiar no caminho para casa, sentir a máxima dor física para aplacar a dor da alma. Se eu tivesse dinheiro, faria uma cirurgia plástica dos olhos ao dedão dos pés. Acho que vou fazer uma tatuagem. E agendar a retirada da vesícula, onde foi diagnosticada uma pedra no final do ano passado. 

A partir de agora, nada mais importa… os planos para o futuro, a moral, os moralismos, a beleza, a velhice, as ilusões, o autoconhecimento, o alívio das angústias, as mentiras que criamos para viver de modo seguro e sereno, o desejo de ser amada, respeitada e admirada, a irracionalidade das paixões, o medo da solidão, os outros, os apetites dos outros, a fragilidade da vida, o milagre da existência, a grandeza do universo, a força da natureza, a falta de controle, a entropia, o caos. O pior que poderia acontecer já aconteceu, “o mundo é um moinho”. Ter o meu bem mais precioso roubado pela morte me faz renascer e encarar a mim e ao mundo sem máscaras, do jeito mais autêntico possível.



NOTAS DA MAMÃE MORRENTE, de MARINA LIMA

Editora Reformatório/Pasavento

Romance autoficcional

ISBN 978-85-68222-52-2

192 páginas

R$ 55,20




Marina Lima é roteirista, pesquisadora de conteúdo e escritora formada em Direito (PUC-SP) e Comunicação Social (UNIBO, Itália) e pós-graduada em Roteiro para Cinema e TV (FAAP). Trabalhou em produções audiovisuais na Itália, Bélgica e Reino Unido em diferentes funções, da pré à pós-produção. Começou os estudos em roteiro na Université Libre de Bruxelles em 2008 e concluiu sua formação na Roteiraria em 2017. Co-criadora e roteirista do podcast “Direito de Sonhar” (2024), apresentado pelo rapper Dexter, roteirista da minissérie documental “Planeta Campo” (Canal Rural, 2022) e do reality show “SOS Salvem o Salão” (GNT, 2017) e colaboradora de roteiro dos longas-metragens de ficção “Maria do Caritó” (dir. João Paulo Jabur, 2019) e “Marighella” (dir. Wagner Moura, 2021). Escreveu e dirigiu a minissérie documental “Sobre Crimes e Castigos” (Canal Curta!, 2015) e o curta-metragem de ficção “Telefone Sem Fio” (2018). Autora do livro de contos “Entre a Memória e o Delírio” (editora Patuá, 2021) e do romance “Notas da Mamãe Morrente” (editora Reformatório, 2025). Atualmente, escreve roteiros corporativos, de branded content e de podcasts para produtoras e agências de publicidade, atendendo clientes como Nestlé, Meta, Electrolux, Gilead, Corteva, Arezzo e Chevrolet, e dedica-se à escrita literária e à criação de filmes e séries autorais em diversos formatos e gêneros, todos preocupados em refletir sobre as contradições da sociedade contemporânea, mas igualmente focados em entreter e encantar os seus públicos.







Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.