Por um segundo | conto de Hosana Batista dos Santos

 por Hosana Batista dos Santos |




Um leitor vive mil vidas antes de morrer. O homem que não lê vive apenas uma”.

                                                                                                George R. R. Martin


A neblina das seis horas da manhã parece um manto, das folhas das aroeiras caem pingos, esses que molham o chão e embriagam um pedacinho de terra. O canto do acauã é a melodia do cenário sertanejo. O orvalho dança em cima dos capins da estrada. Paisagem essa que eu contemplava todos os dias quando ia à cidade levar os leites. Vez ou outra, vinha à memória como o clima mudava a cerca de  três meses atrás, de um lugar árido a uma paisagem verdosa.

 A casa que fazia as entregas era a primeira, já no início da cidade, pacata e pequena como o sítio em que eu morava. Sempre encostava a bicicleta no alpendre, chamava por Dona Isis, onde fazíamos o cálculo da mercadoria, a velha me pagará somente no fim de semana. Vivi essa rotina por cinco anos, antes de ir para Salvador.

            Morava sozinho, meus pais já haviam partido para o mundo dos mortos, não tinha amigos, somente Dona Isis, que vez ou outra conversava comigo sobre suas histórias quando ainda era uma jovem, também morava sozinha, era viúva. Sempre me oferecia um café com abóbora cozida, enquanto devorava um cigarro.

 Meu único passatempo era cuidar dos animais que meu pai  deixou, às vezes ouvia um rádio velho e lia uma bíblia já desgastada, herança de minha mãe. A casa onde morei, era pequena, simples, fria, vazia, não tinha portões, típico das casas daquela época, era rodeada por uma cerca de arame. Era só eu e meu cachorro Sansão, dei esse nome por causa do personagem da bíblia. Acostumei a contemplar aquele pedaço de terra, que se fazia cada vez mais íntimo à minha solidão.

            Lembro-me como se fosse hoje, era uma segunda-feira, levantei  às cinco horas da manhã, como de costume, recitei o salmo vinte e três da bíblia, que já havia decorado, um pai nosso e uma ave-maria, joguei uma água no rosto e fui ordenhar as três vacas que eu tinha. Feito isso, fui até a cidade fazer a entrega. Chegando na casa de Dona Isis a chamei, mas ela não respondeu, voltei a chamá-la e mais uma vez nenhum barulho saia da casa, achei estranho, nunca havia acontecido aquilo. Decidi esperar, sentei-me no banco de madeira e aos meus pés sentou-se Sansão. Ouvi uns passos vindo em direção à porta. Resmunguei: — Dona Isis perdeu a hora! De repente uma voz doce e macia ecoou da porta, — Não é Dona Isis, ela está deitada. Tomei um susto e levantei rapidamente, quando olhei, era a face de uma moça, uma divindade. Ela abriu a porta e descobriu seu rosto, que por uma acaso era tocado pelos raios tímidos  do sol, era uma jóia, uma delicadeza, fiquei sem voz, achei por um momento que estava delirando.

— Bom dia! O senhor é o rapaz do leite?

As palavras me fugiram, quase sem voz respondi: — Sim!

— Pois bem, minha mãe está de cama, não se encontra muito bem, mas não se preocupe, pode deixar os leites aqui.

            Quando voltei à realidade, peguei a mercadoria e levei até a porta. Enquanto me abaixava para colocar os bujões no chão, ela se descobriu de trás da porta velha e desgastada. Levantei o olhar discretamente. Ela usava um vestido azul, com uns botões brancos, dava para ver um pouco das curvas de  suas pernas  morenas, e isso me deixou desconcertado. Coloquei os leites no chão. O nervosismo tomava  conta de mim, nunca tinha visto uma beleza igual por aquelas bandas. Olhei  para o seu rosto  e  falei:

— São vinte litros. Dona Isis  só me paga no fim da semana.

— Certo. Continue trazendo todos os dias.

            Pediu para que eu entrasse. Eu nunca havia entrado naquela casa, Dona Isis nunca me convidava. A sala era bem pequena, com dois sofás de dois lugares, cor cinza, bem velho por sinal e com algumas manchas de mofo causadas certamente pelo inverno frio. No meio da sala havia uma pequena mesa de madeira com um cinzeiro, ainda havia cinzas e restos de cigarro. Para quebrar o clima sem graça, um pequeno jarro de porcelana com duas florzinhas de plástico. Do lado esquerdo, em cima de um pequeno armário, dois porta-retratos, um com uma foto de um bebê, e o outro uma foto bem apagada de um casal. As paredes estavam desbotadas, a pintura era uma mistura de várias tintas que por ali já passaram. Havia uma janela que nunca tinha sido aberta, impedindo o ar de circular, sentia um cheiro estranho vindo de outro cômodo.

            A moça sentou-se ao meu lado, eu num sofá e ela em outro.  Eu não consegui olhar novamente para ela, sua beleza me deixou desconfortável. Sentia um cheiro de Jasmim que me fez lembrar do cheiro da minha mãe. Um clima reinava naquela sala fria, mas os corpos que ali estavam não eram frios, e um deles cheirava à primavera. Eu então, tomei a iniciativa e perguntei:

— Dona Isis está bem?

— Não, é justamente por isso que estou aqui. Minha mãe não está bem de saúde, teve uma crise por conta do cigarro e vim às pressas cuidar dela.

— Entendi. Gosto muito de Dona Isis, costumo conversar com ela.

— Fico feliz em saber que alguém fazia companhia a ela. Pedi muitas vezes para ela ir comigo, mas ela nunca quis sair daqui, sempre foi teimosa.

            Enquanto ela falava, eu olhava para seus cabelos encaracolados, pretos como a noite, dava  para ver um  pouco da sua nuca de fora, isso me provocou delírios. Seus  olhos eram castanhos, olhei um instante para eles e tive a sensação que me penetravam a alma, suas mãos eram tão delicadas que as imaginei me tocando, senti arrepios só de imaginar.

             Não encontrei versículo que descrevesse aquela mulher. Fiquei desnorteado. Ela era um conjunto de todas as coisas que eu gostava, e isso era perigoso. Não prestei atenção no que ela dissera, só me dei conta quando começou a chorar. Não entendi a causa do choro, perguntei se queria que eu pegasse um copo de água e ela me ensinou onde estava e aceitou. Fui até a mesa no segundo cômodo, onde tinha um jarro de água e um copo, aproveitei para molhar a garganta, mas  o cheiro que vinha do quarto ficou mais evidente, mais forte. Sansão como sempre intrometido, farejou até a porta, sinalizando para que eu a abrisse. Com um movimento involuntário eu abri a porta bem devagar, me senti um ladrão, mas aquele cheiro me deixava curioso. Quando abri, o quarto estava escuro e o mau cheiro invadiu minhas narinas, não sei se o que vi foi delírio, tinha um corpo coberto por um pano branco no chão, um cadáver apodrecido. Não havia nada no quarto além de várias garrafas de leite, aparentemente estragados. Por um segundo, esqueci da moça bela que me esperava na sala. Fiquei em choque, derrubei o copo que segurava, comecei a tremer. Busquei uma solução, pensei em chamar a moça, mas minha mente só me pedia para sair daquela atmosfera sinistra. Sem saber o que fazer corri para a porta que dava para os fundos da casa, foram os passos mais pesados que já dei em toda minha vida. Saí no quintal e dei a volta na casa, quase esqueci de pegar minha bicicleta, que tinha encostado no alpendre, ainda olhei rapidamente pela brecha da porta entreaberta e por incrível que parece não vi ninguém do lado de dentro. Nesse exato momento fiquei ofegante. Pensei: — Cadê a mulher? O que está acontecendo aqui?, peguei a bicicleta, e fui embora. Minha cabeça explodiu, meu coração dava saltos dentro do peito, me faltava oxigênio, não tinha ideia do que eu acabava de ver. Eu pedalava tão rápido que não sentia o peso das rodas nos buracos da estrada. Pela primeira vez não prestei atenção ao redor, a neblina me causava arrepios, eu estava gelado. Quando chegava perto de casa , há alguns metros, avistei um senhor que pastoreava umas cabras. Ele, percebendo meu desespero, perguntou se eu estava bem. Eu não conseguia falar, gaguejava as palavras. Perguntei se ele conhecia a Dona Isis, que morava na primeira casa na entrada da cidade. O rapaz arregalou os olhos e riu: — Ninguém com esse nome mora por essas bandas não, e aquela casa faz muitos anos que está fechada. Você deve ter se enganado. Eu não consegui falar absolutamente nada, apenas segui caminho. Chegando em casa, encostei a bicicleta no pé de aroeira, onde sentei e encostei. Ainda trêmulo e gelado não conseguia entender o que tinha acontecido, cheguei a pensar que tinha sido um delírio da minha cabeça, me sentia impotente da realidade. Fui perdendo os sentidos, senti os meus olhos pesados, um amolecimento tomou conta do meu corpo, aquelas imagens não saiam da minha cabeça.

 A face bela daquela moça se misturava ao horror que vi, a adrenalina pulsava  nas minhas veias. De repente, comecei a ouvir uns latidos, bem serenos, pareciam longe, era Sansão aos pés da minha rede, quando me dei conta, havia perdido a hora.  

 



Hosana Batista dos Santos nasceu em Água Branca, Alagoas, no povoado Sítio Estreito, Zona Rural. Aos 25 anos, é graduanda em Letras — Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Campus Sertão, em Delmiro Gouveia, Al. Atualmente atua como pibidiana no PIBID, Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, na Escola Municipal de Educação Básica Virgília Bezerra de Lima. Seu percurso acadêmico reflete o interesse pela linguagem, pela literatura e pelo ensino, áreas nas quais busca aprofundar-se para contribuir com a valorização da educação e da cultura.