A cada um, a sua inspiração | Conto de Dias Campos

por Dias Campos |


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A História registra que Vivaldi, um dos maiores compositores do Barroco italiano, certa vez, quando dizia missa, de súbito foi tomado por uma inspiração. Ele, então, simplesmente suspendeu a celebração e se foi à partitura, ávido por transcrever no papel a música que o seu coração captara. E por esse ultraje, foi excomungado.

Esse fato sempre impressionou padre Augusto, que abraçara com o mesmo ardor a fé que o chamara ao sacerdócio e o violão que herdara do seu abnegado pai. 

Seria possível, questionava-se, que algum dia Deus o provaria da mesma maneira? e se o fizesse, para qual dos pratos penderia o fiel da sua balança?

Essa indagação, o pároco nunca teve coragem de participar a um colega de hábito, a um parente, ou mesmo a um amigo, tamanho o medo de que, se o fizesse, a porta à perdição ficaria entreaberta.

Ocorre que esse questionamento crescia... E o pânico já o envolvia quando da eucaristia.

Para fazer frente a esse tormento, o reverendo desdobrou-se em orações e redobrou o seu compromisso para com a paróquia e os necessitados.

No entanto, não teve forças para abandonar o violão, pois a melodia que espargia sempre lhe pareceu uma prece, maviosa, sincera e fervorosa.

Apesar dessa tortura, padre Augusto seguia adiante, esperançoso de que sua retidão, disciplina e devoção fossem suficientes para preservá-lo do que acreditava ser a sua maior provação.

Essa tentação, contudo, não diminuía, e atingiu o seu clímax quando o sacerdote foi celebrar uma missa na capela recém-reformada de uma abastada carola, em memória do seu falecido marido.

Quando lá chegou, o pároco, que estava muito feliz e honrado, quase desmaiou ao notar um sexteto especialmente contratado para dulcificar a cerimônia.

E apesar da sua máxima dedicação à pregação, bastou que os violonistas dedilhassem os primeiros compassos da Ave Maria de Schubert para que uma sublime sensação começasse a seduzir o orador. O enlevo a que se entregava era tão indescritível, que o reverendo por muito pouco não largou o missal e fez da toalha branca sobre o altar a sua partitura.

Concluído o ofício, e o sacerdote sentia-se satisfeito, confiante, um vencedor! Com efeito, diante daquela prova, ele conseguira conter a inspiração que lhe derramara o céu, relegando o êxtase da composição ao seu devido e apropriado momento.

A vitória, porém, não dispensa a comemoração. E o jeito foi se confiar, menos de alma do que de corpo, a um voluptuoso churrasco, com que padre Augusto terminou o domingo no mais puro contentamento.

E esse regozijo ainda iria aumentar, pois tão logo terminaram os afazeres da segunda-feira e o pároco deparou-se com uma carta que há muito aguardava.

O texto era conciso, mas transbordante de entusiasmo — o Clube Recreativo da comunidade respondia à solicitação que lhe fizera o reverendo, sentindo-se imensamente feliz por tê-lo como solista em recital de violão marcado para o sábado seguinte, às 20h.

Não se poderia descrever o júbilo que se apossou de padre Augusto! Mas isso nada tinha a ver com as glórias mundanas, pois seria a sua própria alma que louvaria o Sempiterno por intermédio daquele instrumento angelical. E isso o fez chorar de alegria, e de gratidão.

Como os dias seriam curtos, todo e qualquer tempo vago deveria ser dedicado ao violão. Mesmo assim, e a seu ver, isso não seria suficiente, o que fez com que o sacerdote decidisse por avançar na madrugada. 

Ao final, quando as cinco composições que escolhera estivessem sendo executadas com a perfeição dos querubins, todo o esforço que dispendera teria valido a pena, pois sua música tocaria os corações da plateia, alçando-lhes os espíritos, como o dele próprio se elevaria.

E unindo a disciplina teutônica à pontualidade britânica, o pároco se dedicou a treinar a sua música por toda a curta semana.

Na noite gloriosa, o salão de baile onde aconteceria a apresentação estava completamente tomado. Fossem diretores, associados ou seus parentes, todos já estavam sentados e à espera daquele que diziam ser um virtuose.

Padre Augusto estava nervoso. Mas o nervosismo foi acalmado com uma prece proferida à baixa voz.

Ele entrou. E durante o seu trajeto foi efusivamente aplaudido. 

Sentou-se em uma cadeira no centro do palco; apoiou o pé esquerdo sobre uma banqueta, e o violão, sobre a respectiva coxa, como deve ser ao violão clássico; e preparou-se para iniciar o espetáculo, fazendo do silêncio a deixa necessária para que os seus acordes se fizessem ouvir.

E naquele átimo que medeia o fim da concentração e o início da execução, outra inspiração descia dos céus...

O reverendo, chorando de emoção, e sem opor nenhuma resistência, pôs o violão de lado, levantou-se, abriu os braços, e, consciente de que o seu verdadeiro testemunho acontecia, convidou a todos a participarem de uma missa que rezaria naquele instante.

Poucos abandonaram o salão; até porque, a homilia foi curta, comovedora e cativante.

O recital acabou acontecendo em seguida. E foi primoroso, memorável!

E ao contrário do que aconteceu a Antonio Vivaldi, padre Augusto não seria excomungado. No entanto, e porque decidisse preservar-se de futuros embaraços, por um bom tempo ainda comungaria com o seu violão somente no aconchego do próprio quarto.




Dias Campos é autor do romance “As vidas do chanceler de ferro”, Lisboa: Chiado Editora; Colunista do Jornal ROL; do (atual) site Cultura & Cidadania; do Portal Show Vip; e do (atual) portal Pense! Numa notícia; autor de diversos textos literários; autor e coautor de livros e artigos jurídicos.