por Taciana Oliveira |
Wallace
Armani propõe uma ruptura radical com a lógica neoliberal no livro “Por uma
administração socialista”
Professor e
doutorando em Sociologia Política, Wallace Armani lança Por
uma administração socialista (Editora Diálogo Freiriano, 2025), obra
que desafia as bases da chamada “administração científica” ao revelar seu papel
como instrumento de dominação capitalista nas mais diversas esferas — das
empresas às igrejas. Com uma escrita ensaística e acessível, Armani propõe uma
leitura marxista da Administração como campo político e ideológico,
questionando sua pretensa neutralidade técnica.
O livro, concebido a partir de sua experiência em sala de aula e das pesquisas de doutorado, se coloca como manifesto intelectual e político em defesa de uma prática administrativa voltada à emancipação humana. “A Administração é a gramática do neoliberalismo”, afirma o autor, que vê no socialismo revolucionário a única via possível de superação das estruturas de exploração e alienação impostas pelo capital.
Em entrevista, Wallace Armani fala sobre as origens da obra, os desafios de tensionar um campo tradicionalmente voltado à gestão empresarial e os caminhos para construir uma ciência comprometida com a transformação social.
1. Seu livro “Por uma administração socialista” critica a ideia de que a Administração seja um campo neutro ou meramente técnico. Como essa percepção equivocada contribui para reforçar a lógica capitalista no dia a dia das organizações?
A percepção
equivocada de que a administração é neutra ou puramente técnica contribui para
reforçar a lógica capitalista porque disfarça sua verdadeira natureza de classe
e a transforma em uma “ciência da eficiência”, ocultando que sua função real é
manter e reproduzir as relações de exploração. Ao se apresentar como um campo
objetivo, voltado apenas a resultados e produtividade, a administração
naturaliza a subordinação do trabalhador ao capital, convertendo processos
históricos de dominação em meras questões de gestão. Essa falsa neutralidade
legitima a desigualdade, esvazia o sentido político do trabalho e transforma a
própria vida social em um conjunto de métricas e indicadores, onde tudo —
inclusive o ser humano e a natureza — vira instrumento para a valorização do
valor. Assim, o discurso técnico da administração opera como ideologia:
organiza e perpetua as contradições de classe, mascarando-as sob a aparência de
racionalidade e progresso.
2. A obra aponta a “administração científica” como ferramenta de dominação que permeia desde empresas até igrejas. Pode nos dar exemplos práticos de como essa lógica se manifesta em diferentes instituições?
A lógica da
“administração científica” se manifesta em diferentes instituições sempre que a
separação entre quem pensa e quem executa é naturalizada — isto é, quando a
dominação se disfarça de eficiência. Nas empresas privadas, isso aparece nas
metas obsessivas, nos sistemas de controle de desempenho e na linguagem
gerencial que transforma pessoas em “recursos humanos”. O trabalhador é
reduzido a uma peça intercambiável do mecanismo produtivo, vigiado por
indicadores e algoritmos que definem seu valor em função da produtividade.
Nas escolas e
universidades, a mesma lógica surge nas políticas de gestão por resultados, nas
provas padronizadas, nas métricas de “excelência acadêmica” e nos rankings de
desempenho. O conhecimento, antes um bem social, vira mercadoria; professores e
alunos são administrados como partes de um sistema produtivo voltado a entregar
“resultados mensuráveis”, não formação crítica.
Nas igrejas, a
racionalidade gerencial assume a forma de marketing religioso: fiéis como
“clientes”, cultos como “produtos”, líderes como “gestores de fé”. Planos
estratégicos, metas de crescimento e relatórios de desempenho espiritual
revelam a colonização da própria espiritualidade pela lógica da eficiência
capitalista.
Até nas políticas
públicas a administração científica se infiltra — com metas numéricas,
auditorias, “otimização de recursos” e linguagem de mercado. O Estado passa a
funcionar como empresa, e o cidadão vira usuário, não sujeito de direitos.
Em todos esses casos, o mesmo princípio opera: a técnica e a gestão são usadas como instrumentos de dominação simbólica e material, expropriando das pessoas o controle sobre seu próprio trabalho e sua vida social. É a forma moderna da alienação — limpa, planilhada e travestida de racionalidade.
3. Você
afirma que não acredita em reformas no capitalismo, mas sim no
socialismo como único caminho para a emancipação humana. Como essa visão
dialoga com o campo da Administração, tão associado ao mercado e ao lucro?
A visão de que a
emancipação humana só é possível pelo socialismo dialoga com o campo da
Administração de forma radical e subversiva: ela desmonta a base sobre a qual
esse campo foi construído. Em vez de aceitar a Administração como instrumento
técnico voltado à eficiência e ao lucro, essa perspectiva a reconcebe como
práxis política, inseparável da luta de classes e da transformação social. No
capitalismo, administrar significa reproduzir a lógica da valorização do valor
— controlar, medir, explorar, otimizar. No socialismo, administrar significa
organizar coletivamente a vida, com base em critérios humanos, não mercantis.
Isso implica
abandonar a ideia de que é possível “humanizar” ou “reformar” a gestão
capitalista. Rejeita-se as ilusões reformistas e propõe-se a autogestão dos
trabalhadores como fundamento de uma nova racionalidade histórica, onde o saber
e o fazer se unificam, e o trabalho deixa de ser mercadoria para se tornar
atividade criadora e socializadora. A Administração, assim, deixa de ser
domínio de especialistas e passa a ser ato coletivo de deliberação e
planejamento democrático, guiado pelas necessidades humanas e pela
sustentabilidade da vida, não pela rentabilidade.
Nesse sentido, o campo da Administração, tal como o conhecemos, não é “neutro” nem “adaptável”: ele precisa ser superado com o próprio capitalismo. Uma administração socialista não é uma versão ética da atual, mas um novo modo de vida, fundado na solidariedade, na cooperação e na partilha da riqueza. É a negação da eficiência voltada ao lucro e a afirmação da suficiência voltada à vida. Enquanto a Administração capitalista organiza a barbárie com planilhas, a Administração socialista busca organizar a libertação com consciência coletiva.
4. O processo
de escrita do livro teve forte relação com sua experiência em sala de aula e
nas pesquisas de doutorado. De que forma seus alunos e sua prática docente
influenciaram a construção dessa obra?
O processo de
escrita do livro Por uma Administração
Socialista nasceu diretamente da sala de aula — do embate vivo entre teoria
crítica e formação técnica, entre o pensamento social e a lógica empresarial.
Lecionando Ciências Sociais e Humanas para alunos de Administração e Ciências
Contábeis em uma universidade privada do Rio de Janeiro, pude testemunhar como
os clássicos — Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Marx, Weber, Durkheim,
Lenin — ainda provocam desconforto quando confrontam a lógica dominante do
mercado. Muitos estudantes viam em autores críticos, especialmente Marx e
Lenin, uma suposta “doutrinação”, reflexo da ideologia que naturaliza o
capitalismo como única forma possível de vida social.
Essas reações me
fizeram perceber com mais nitidez o papel da universidade: ela não pode ser
mera reprodutora de técnicas, mas espaço de questionamento das bases históricas
e políticas que sustentam o que chamamos de “conhecimento útil”. Assim, a sala
de aula tornou-se um laboratório de reflexão sobre o próprio sentido da
Administração — e foi nesse diálogo tenso, mas fecundo, que o livro ganhou
forma.
A pesquisa de
doutorado, por sua vez, deu sustentação teórica a essa vivência prática. A
partir do marxismo, compreendi que a Administração não é uma ferramenta neutra,
e sim uma forma histórica de organização do trabalho na lógica do
capital. As discussões com os alunos, suas resistências e inquietações,
ajudaram a traduzir conceitos densos em análises concretas sobre o cotidiano
organizacional, mostrando que pensar criticamente a gestão é, em si, um ato
político.
Assim, Por uma Administração Socialista é fruto
desse encontro entre teoria e prática, pesquisa e docência, conflito e
reflexão. É um livro escrito não somente a partir das leituras, mas também das
reações — das perguntas e silêncios — de estudantes que, sem perceber,
participaram da construção de uma crítica radical à administração enquanto
expressão da sociabilidade capitalista.
Wallace Armani, 48 anos, é natural de Belo Horizonte e reside no Rio de Janeiro. Doutorando e mestre em Sociologia Política (IUPERJ-UCAM), é graduado em Secretariado Executivo, Empreendedorismo, Ciências Humanas, Ciência Política e Gestão de Partidos Políticos, além de possuir três pós-graduações. Atua como diretor-geral na Wallace Armani — Centro de Idiomas e Outros Estudos (CIOE) e editor geral na Editora Simulacro. Hiperpoliglota reconhecido pela HYPIA (The International Association of Hyperpolyglots), é também autor de “Impeachment: Sinal de Crise da Democracia” (Diálogo Freiriano/2024) e de obras de ficção científica e ensaios sociológicos publicados pela Editora Simulacro.
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