Entre o sertão e o apocalipse: João Matias revela um Brasil em colapso em Os Interiores

por Taciana Oliveira |


Entre o sertão e o apocalipse: João Matias revela um Brasil em colapso em "Os Interiores"


Com
Os Interiores, o escritor, roteirista e professor cearense João Matias concebe uma obra que mistura brutalidade, lirismo e comentário social em uma narrativa de fôlego.  O romance , publicado pela Editora Patuá e finalista do Prêmio Alta Literatura,  é uma alegoria recente do Brasil contemporâneo. Misturando distopia, crítica social e memória regional, Matias projeta um país à beira do colapso, atravessado por violência de gênero, militarização, descaso ambiental e deslocamentos humanos.

A trama parte de um gesto brutal: Tieta, esposa de um general e agressor, mata o marido e foge pelo sertão. O crime inaugura uma travessia física e simbólica, uma travessia de retorno às origens que é também um mergulho nas ruínas de um Brasil devastado. O cenário, entre voçorocas, retirantes e cidades em escombro, transforma a paisagem nordestina em personagem viva, corroída pela seca, pela guerra e pelo esquecimento

O crítico literário Sérgio Tavares, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, define a obra como “um road book em que cenas brutais e diálogos afiados se cruzam num fluxo de tensão que flerta com o novo horror, trazendo ecos de um Brasil reacionário recente”. Os Interiores combina ritmo cinematográfico, linguagem cabal e atmosfera de pesadelo social, o novo horror brasileiro, enraizado na realidade.

O autor revela que a inspiração veio de sua vivência entre 2018 e 2022, período marcado por crise política, violência e negligência ambiental. A obra presta homenagem a Cândido ou o Otimismo, de Voltaire, e transforma o sertão em laboratório distópico de um mundo à deriva. As “voçorocas” que engolem cidades e pessoas funcionam como metáfora do colapso ético e ecológico.

Tieta é uma anti-heroína complexa, moldada por privações e pela necessidade de sobreviver em meio ao patriarcado e à barbárie. Seu itinerário entre o crime, o desespero e o desejo de pertencimento, revela um país onde a redenção se mistura à culpa e à violência.

Abaixo segue uma entrevista com o autor:

1. Com 164 páginas, Os Interiores confirma João Matias, é uma obra que olha para o passado, denuncia o presente e imagina futuro1.Seu romance nasce de uma experiência concreta de violência social, descaso ambiental e tensões políticas. Como foi o processo de transformar esse contexto histórico e pessoal em uma narrativa distópica e literária?

Nunca vivi algo parecido ao que é retratado em Os Interiores, felizmente! Então, o contexto pessoal é algo mais referencial e imaginativo do que propriamente da experiência do que foi vivido por mim. Já em relação ao contexto histórico, este se inspira nas aventuras militaristas vistas ao longo da história do Brasil. Quis dar ares de algo distópico a uma coisa que é vista tanto no passado como também no presente, se formos pensar que os últimos anos foram marcados por golpes militares naufragados e por outros que se desenvolveram fora daqui (é o caso da experiência internacional no Haiti, que inclui a deposição de líderes políticos e o ocaso provocado por esta missão). Pensei em fazer um "road book", um livro que se desenvolvesse todo ele numa estrada, em direção aos interiores, essa entidade geográfica que pode ser o sertão paraibano e cearense, mas também o sertão de todos os lugares. Nele, uma viúva-herdeira luta contra homens para adquirir o controle de suas terras, com uma inspiração direta em personagens fortes e determinadas, que fui encontrar em Rachel de Queiroz, Ana Paula Maia, Jorge Amado, Camila Sosa Villada, Flannery O’Connor, Silvina ocampo, dentre outras. Portanto, de contexto pessoal o que me vem talvez sejam a memória das voçorocas, estes grandes buracos que engolem cidades inteiras e, claro, toda a reação ao que aconteceu e acontece no Brasil quando, por exemplo, vemos o massacre à população do Rio de Janeiro em 29 de outubro de 2025. Os Interiores é também um romance sobre desumanização, militarismos, ambições e ocupações, por trás de uma história tão singular como é a história de Tieta, a protagonista. Tudo que ela quer é a posse de suas terras; os homens, voçorocas, golpes e impedimentos que ela terá de enfrentar para obter ou não a posse destas terras é o que dá o tom do medo, da tensão e do conflito. O pessoal e o político-geográfico se misturam o tempo inteiro, nesta estrada em direção aos interiores das personagens e do próprio Brasil.

2. A personagem Tieta é marcada por uma trajetória de violência e resistência. Como foi construir uma protagonista que, ao mesmo tempo, encarna a luta por sobrevivência e desafia estruturas de gênero e poder?

Tieta teve inspiração direta na mistura entre a personagem icônica de Jorge Amado, as muitas marias de Rachel de Queiroz e também algo da ironia das personagens de Camila Sosa Villada. Desde a infância, Tieta passa por privações, violências e conflitos, sobretudo com homens. Enquanto uma mulher crescida no interior do nordeste, teve de obedecer desde cedo a um pai militar errático, depois a um marido general abusador e autoritário e, por fim, ao código de conduta de uma viúva-herdeira diante de um golpe militar que se consolida. Ao pegar a estrada, acompanhada de Bernardo, Tieta se vê em um emaranhado de situações criado por ela e que se torna cada vez mais difícil de se dissolver. A única resposta possível é seguir adiante. A sobrevivência para ela é um reencontro consigo mesma: o objetivo de ir aos interiores e tomar suas terras. O desafio às estruturas que a impedem é a sombra do seu próprio desejo, pois foi nessas violências que ela se construiu e, em devolutiva, responde com esse olhar um tanto absorto sobre tudo e sobre todos.

3. A geografia tem um papel central em Os Interiores, quase como uma personagem. Como você enxerga a paisagem nordestina na narrativa: como cenário, símbolo ou força de ação?

Como os três. É cenário porque é a paisagem árida que dá o tom dos sons, da t emperatura, das voçorocas, dos retirantes e de tudo o mais. É símbolo porque representa os interiores de todos os lugares, o Haiti, os sertões (que estão em todo lugar, não só no nordeste brasileiro), as paisagens ermas, a vivência de uma geografia determinada e determinante. É força de ação porque é a estrada que atravessa e é atravessada por Tieta e Bernardo, com os acontecimentos, as cidades, o sol, os sons dando o tom da ação e também da tensão. Neste sentido, lembro que um fator de inspiração constante são os autores do Southern gothic norte-americano, principalmente a Flannery O’Connor, além da Shirley Jackson, e seus homens maus. Não posso deixar de citar o Cormarc Mcarthy em A estrada e Meridiano de sangue, dentre tantos outros. A própria Ana Paula Maia e as paisagens ermas pervagadas por Edgar Wilson. Uma geografia prenhe, urgente e comunicativa nos seus silêncios e na sua escuta.

4. No livro, você aborda questões como militarização, mudanças climáticas e violência de gênero, temas profundamente atuais. Como foi equilibrar esse conteúdo crítico com a construção de uma trama ficcional envolvente?

Nos diálogos, na construção da paisagem, na ação que se desenrola para além do carro, na rádio, nos sonhos, nas notícias que chegam, nas cidades, no ambiente. O ponto de vista do narrador é o da consciência e da inconsciência de Tieta, a viúva-herdeira que assassina seu marido para tomar suas terras. A partir do fato em si, Tieta busca um reencontro com suas terras e consigo mesma. Gosto da expressão que Roberto Menezes, um amigo escritor, utiliza: o narrador drone. Tudo que ocorre do lado de fora é um segundo plano decisivo que explica e, ao mesmo tempo, suprime o primeiro: Tieta, seu desejo e sua determinação. Por isso, o foco não é uma denúncia à militarização, às violências ou às mudanças climáticas, embora a pretensão da distopia seja a de, ao final, se construir como uma imensa crítica ao tempo presente e suas consequências para o tempo futuro. Pretendo contar uma história que dialogue com aspectos preocupantes do presente e que podem se tornar ainda mais catastróficos no futuro. Uma alegoria em que o ambiente, a geografia, seja um fator de medo, anseio e triste realidade, mas que o foco continua sendo Tieta e seu desejo.


5. Você é também contista e roteirista de cinema e quadrinhos. De que forma essa trajetória em outras linguagens influenciou o ritmo, a estrutura e a construção de imagens no romance?

De forma absoluta. Trabalhei como argumentista e roteirista no longa metragem brasileiro O Nó do Diabo, da brava produtora paraibana Vermelho Profundo. Sinto que foi ali que aprendi a construir imagens através de narrativas que, por mais densas que sejam, precisam dar ao leitor o tom preciso dos cortes de uma cena. Nos quadrinhos aprendi uma maneira didática de contar histórias, mas que não se resumem ao didatismo ou ao pedagogismo, e sim à continuidade desta narrativa em trânsito. Tenho outros livros publicados, além de Os Interiores, todos eles de contos. Publiquei Os Santos do Chão Bravo, pela editora Caos e Letras, em 2022, um livro que foi importante para definir qual seria meu universo temático; para além dele, publiquei o As Madrinhas da Rua do Sol em 2023, no qual este universo se adensa para mostrar uma João Pessoa perdida entre passado, presente e futuro. Este último sendo um livro mais experimental, no qual brinquei com gêneros tão distintos quanto a ficção científica e o horror urbano. Antes deles, destaco O Lugar dos Dissidentes, um livro de microcontos que publiquei pela Editora Escaleras, o qual foi importante para mim enquanto escritor exercitar a singularidade das narrativas curtas. Todos estes livros têm o mérito de trazer consigo editores talentosos. Um deles é o Eduardo Sabino, um dos editores e fundadores da Caos e Letras, que me ajudou e ajuda sempre não só a revisar meus livros como a refletir sobre este universo temático; outra foi a Débora Gil Pantaleão e seu olhar atento à poesia e aos cortes precisos da narrativa. Também destaco a importância dos amigos que leram e fizeram indicações precisas para a construção de Os Interiores, é o caso de Eduardo Sabino, Bruno Ribeiro, Mylena Queiroz, Isabor Quintiere, Roberto Menezes, Wander Shirukaya, Sérgio Tavares, Joedson Adriano. Todos eles escritores talentosos. Minha companheira, a Cibele, que no dia a dia discute comigo os desafios do escrever. E não menos importante é a presença do meu editor atual, o Eduardo Lacerda, que com a editora Patuá continua publicando o que há de melhor na literatura independente nacional. Creio que Os Interiores seja, portanto, um resultado conjunto da ajuda de todas estas pessoas, para além de minha própria experiência como roteirista e autor num sentido geral.




Nascido em Juazeiro do Norte (CE) e residente no Crato (CE), João Matias também viveu em outras cidades, entre elas João Pessoa (PB), onde morou por 15 anos. Jornalista e cientista social, é professor da Universidade Regional do Cariri, atuando na disciplina de Teoria e Pesquisa em Sociologia e no Programa de Pós-Graduação em Letras. Antes do romance, construiu trajetória sólida como contista, com os livros O lugar dos dissidentes (Editora Escaleras, 2019), Os santos do chão bravo (Caos e Letras, 2022) e As madrinhas da rua do sol (Caos e Letras, 2023). Também é roteirista de cinema e quadrinhos, coautor do argumento do longa de horror brasileiro O Nó do Diabo (2017), apresentador do podcast sobre literatura Lavadeiras do São Francisco e integrante do projeto O Livro Quebrado, dedicado a entrevistas com autores nacionais. Entre suas influências literárias estão Rachel de Queiroz, Dalton Trevisan, Murilo Rubião, Rubem Fonseca, Cormac McCarthy, Flannery O’Connor, Silvina Ocampo, Ana Paula Maia e João Ubaldo Ribeiro. “Creio que busco uma linguagem próxima de uma realidade sucinta, objetiva e clara, mas sem renunciar à ironia. Procuro encontrar no leitor o respiro, a cadência e o ritmo de uma tensão urdida no limite do real e do irreal, da crença e da dúvida, da calma e da violência”, resume.


 


FICHA TÉCNICA

Livro: Os Interiores

Autor: João Matias

Gênero: romance/ficção

ISBN: 978-65-281-0142-9

Editora: Patuá

Páginas: 164

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Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.