por Taciana Oliveira |
Helen Kaliski e o “Açougue de Pequenos Prazeres 3.0”: quando a ficção científica corta a carne do capitalismo
A escritora e artista Helen Kaliski provoca o público com o lançamento de Açougue de Pequenos Prazeres 3.0, um projeto transmídia que une literatura, dramaturgia sonora, artes visuais e acessibilidade, ampliando as fronteiras entre ficção científica e crítica social. A obra, lançada em outubro em Curitiba, propõe uma experiência sensorial e política: um universo distópico onde tudo, inclusive os desejos, pode ser comprado, revelando as engrenagens mais sombrias do capitalismo contemporâneo. O projeto, que nasceu de uma pesquisa iniciada em 2018, chega agora em formato impresso e em podcast de três episódios, com dramaturgias interpretadas por artistas convidados. A publicação, distribuída gratuitamente, vem acompanhada de um bate-papo com mediação de Daniele Rosa e interpretação em Libras, reforçando o compromisso da artista com a inclusão e a democratização do acesso à arte.
Em entrevista a Mirada, Helen revela a origem do “Açougue” como um espaço ficcional que se expande por múltiplas linguagens: textos, colagens, mapas e até formulários de entrada desse misterioso estabelecimento onde o desejo é mercadoria. A autora, artista trans dissidente, entende a criação como um gesto de resistência: ocupar o campo literário com vozes LGBTQIAPN+ é também desafiar os limites do mercado e criar novas possibilidades de representação e existência. Entre o humor ácido, a autocrítica e o olhar afiado sobre as formas de controle, Helen Kaliski convida o público a refletir sobre o preço que se paga por prazer, poder e pertencimento.
“O Açougue sempre foi um reflexo e um produto desse universo capitalista em que vivemos… Acredito que a ficção científica de nós mesmos começa ali, nesse espaço onde desejos e corpos são transformados em mercadoria”, afirma.
Na entrevista a seguir, Helen Kaliski fala sobre o processo de expansão da obra, o desafio de construir uma narrativa híbrida e o papel das vozes dissidentes na literatura contemporânea.
1. O Açougue de Pequenos Prazeres nasceu de uma pesquisa iniciada em 2018 e hoje se apresenta como um projeto transmídia. Como foi esse processo de expansão da obra do livro ao podcast e à experiência coletiva?
Penso que esse processo de expansão da obra para outros formatos foi se dando gradativamente, à medida que fui experimentando criar esse universo ficcional do Açougue em diferentes formatos. Inicialmente comecei escrevendo alguns trechos bem picotados de textos acerca de uma única pessoa que entra nesse local ficcional com o intuito de pagar qualquer quantia para ter o seu desejo realizado. A partir disso senti vontade de expandir esse trabalho para as artes visuais (por meio de colagens, ilustrações e pop-us), podendo então criar algumas provocações imagéticas sobre o que seria esse ambiente, como seriam os seres que habitam esse local, como são os mapas dessa instituição privada, como são as propagandas, os formulários de entrada e por aí vai... até agora onde tive a possibilidade de lançar esse material enquanto publicação impressa e um podcast com três episódios.
2. A narrativa se passa em um submundo distópico onde tudo pode ser comprado. De que maneira essa ficção dialoga com críticas reais ao capitalismo e às formas de controle que vivemos hoje?
Para mim o Açougue sempre foi um reflexo e também um produto desse universo capitalista em que vivemos e estabelece uma crítica ao capitalismo à medida que propõe a existência de um local "distópico" onde qualquer desejo pode ser realizado basta se pagar a quantia certa. Esse submundo faz uma analogia à crescente monetização de vontades, existências e corpos e também a individualização das responsabilidades sociais e a crença da satisfação voraz através do dinheiro e do poder que o dinheiro proporciona. A narrativa desenvolvida convida a quem lê e ouve a adentrar as portas dessa instituição privada que existe no coração de cada cidade. O espaço físico do Açougue pode ser imperceptível aos olhos mal treinados, mas é neste local que a ficção científica de nós mesmos se inicia. Os desejos mais profundos são realizados ali, não importam quais sejam. Neste local a sensibilidade de cada pessoa encontra sua expressão mais verdadeira. Emoções e desejos se transformam em ambientes planejados ou intervenções cirúrgicas que aliam tecnologia e satisfação plena.
3. O projeto tem uma forte dimensão política, sendo também uma produção de uma artista trans dissidente. Qual a importância de ocupar espaços literários e culturais com vozes LGBTQIAPN+?
Há uma importância bastante considerável na produção e neste ocupar de espaços literários e culturais com vozes LGBTQIAPN+ por tantos e diversos fatores. Em termos de mercado mesmo, a produção é em grande parte feita de forma independente e autoral, com algumas pequenas editoras que possuem enfoque e/ou abertura para tais tipos de produção. Então, ter a possibilidade de distribuir todos os exemplares da publicação impressa, assim como o acesso aos episódios do podcast de forma gratuita, se torna uma forma de promover a diversidade artística e cultural de vozes nacionais, contemporâneas e dissidentes.
4. Você escolheu unir literatura, dramaturgia sonora, artes visuais e acessibilidade (com Libras e versão em Braille). Como foi o desafio de construir uma obra verdadeiramente híbrida?
Acho que o maior desafio desse projeto transmídia e multiformato foi o de entender conjuntamente com a equipe criativa e técnica as diversas camadas e necessidades criativas do projeto, seja para o podcast, ou para a publicação impressa, os bate-papos, a versão em Libras do podcast e também a versão em Braille… foi bastante sobre entender que uma única e mesma coisa dentro do Açougue teve inúmeros e diferentes desdobramentos, o que eu acho muito incrível e potente!
5. Se o Açougue é um lugar onde qualquer desejo pode ser comprado, o que você espera que o público “leve” dessa experiência para além da ficção?
Olha, espero que o público possa se divertir antes de tudo com a ideia de embarcar nesse universo ficcional de prazeres pagos. O Açougue tem bastante de um humor irônico e uma autocrítica, então se isso chegar ao público, fico extremamente feliz!


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