por *Taciana Oliveira |
Revoluteia, de Mayk Oliveira
Revoluteia (Urutau, 2025), de Mayk Oliveira, apresenta-se como um projeto poético que articula trabalho, corpo e tempo em uma dialética contínua entre opressão e resistência. O livro constrói um campo semântico sustentado por metáforas mecânicas (engrenagens, relógios, parafusos e máquinas) que funcionam não somente como imagens recorrentes, mas como dispositivos conceituais que estruturam a visão de mundo do eu lírico. O resultado é uma obra que problematiza a experiência laboral contemporânea e, ao mesmo tempo, propõe uma ética e uma estética da desautomatização. Nos primeiros poemas, o livro estabelece uma crítica contundente ao regime capitalista de temporalidade, aproximando-se de tradições literárias que vão de Cesare Pavese a Ferreira Gullar. Termos como “monstro sem face”, “engrenagem”, “relógio faminto” e “máquina” configuram o trabalho como força desumanizadora, operando uma captura do corpo e do tempo do sujeito.
Em poemas como “revoluteia”, “o homem” e “engrenagem”, o trabalho aparece como “tirania do agora” e “ferrugem da rotina”, metáforas que comunicam tanto a corrosão subjetiva quanto a alienação estrutural. A construção imagética sugere um corpo que se torna extensão da máquina, destituído de interioridade — uma leitura que ecoa análises de Marx sobre o trabalho estranhado e, em termos estéticos, de Adorno sobre a mecanização da experiência moderna. A temporalidade aparece como instância de violência simbólica: o relógio é “faca”, “mordida”, “dente”, elementos que reforçam a ideia de que o tempo cronológico, no capitalismo, opera como instrumento disciplinar. Essa dimensão temporal é um dos fios teóricos mais robustos do livro, transformando Revoluteia em uma espécie de cartografia lírica da exploração cotidiana.
À medida que o livro avança, porém, o eu poético desloca-se do diagnóstico da opressão para a formulação de estratégias de resistência. Esse movimento corresponde ao que Michel de Certeau denomina “táticas do cotidiano”: microgestos que restauram agência e subjetividade. Nos poemas “fios invisíveis”, “correnteza do dia” e “sopro de liberdade”, emerge uma poética da rebelião íntima. O corpo, antes reduzido a ferramenta, ressurge como locus de potência, desejo e imaginação. O ato de “cortar a corda”, “romper o laço” ou “rasgar a máquina” simboliza a passagem da sujeição para a insurgência. Há, portanto, um reposicionamento do sujeito: da condição de engrenagem para a de agente transformador. A ideia de “revolutear” torna-se neologismo existencial, assumindo a função de verbo político, um giro interno capaz de reconfigurar o mundo vivido.
A segunda metade do livro instaura um conjunto de poemas amorosos que desafia leituras superficiais desse motivo literário. O amor, em Revoluteia, é apresentado como tecnologia de resistência, não como escapismo. Poemas como “insurreição do amor”, “amor sem relógio” e “o poema que somos” elaboram uma teoria afetiva na qual o vínculo amoroso interrompe a lógica produtiva. O amor suspende o tempo, literalmente: os ponteiros param, e cria uma temporalidade própria, que aproxima o livro de noções filosóficas como o kairos (tempo oportuno) e a “heterocronia” de Foucault. O erotismo também ganha valor político; o corpo do outro funciona como “revolução silenciosa”, “faísca contra o vazio”, “subversão”. Assim, o poema amoroso aqui não é apenas lírico, mas insurrecional.
A parte final do livro desloca o foco para a natureza, a memória e a impermanência. Poemas como “lembranças no vento”, “poeira” e “queda” revelam a fusão entre matéria e subjetividade, retomando um lirismo telúrico que se aproxima da poética de João Cabral, mas com entonação própria, sertaneja, atravessada por um senso de finitude. O livro encerra com “fardo”, poema que articula destinatários coletivos (“se todos são sementes”, “se todos são chamas”) a um sujeito que se oferece como terra, leito, vento, estrada. Essa metamorfose final projeta uma ética comunitária, fundamentada na interdependência entre ser humano e mundo natural. Revoluteia caracteriza-se por um rigor imagético, uma coerência temática e uma organização interna que conferem ao livro grande solidez estética. Mayk Oliveira demonstra domínio do ritmo, da repetição e da construção metafórica, produzindo um poema social sem panfleto, um poema amoroso sem pieguice, um poema ecológico sem idealização. A obra articula crítica social, lirismo afetivo e contemplação existencial, configurando-se como um dos raros livros contemporâneos que compreendem o trabalho como experiência ontológica, o amor como insurgência e o corpo como campo de luta.
Assim, Revoluteia insere-se com maturidade no panorama da poesia brasileira do século XXI, tensionando os limites entre o humano e a máquina, entre o tempo medido e o tempo vivido, entre opressão e liberdade, e oferecendo ao leitor não apenas poemas, mas modos possíveis de respirar. É, acima de tudo, um livro sobre recuperar-se de si e do mundo. De romper engrenagens externas e internas, de denunciar o que oprime sem perder o brilho do que salva. Mayk escreve com uma voz madura, consciente, uma poesia que não teme ser política, sensível, corporal e metafísica ao mesmo tempo.Um livro que, como o próprio título sugere, revoluteia no peito e acende.
Compre: clica aqui
Poemas do livro:
revoluteia
o trabalho é um monstro sem face,
engole meus dias,
minha alma,
meu grito,
e eu, homem de aço e carne,
sigo na engrenagem,
como parte do maldito relógio,
que diz o que sou,
mas não o que posso ser
relojoeiro de minha vida,
já não aceito mais a promessa de tempo.
quero horas sem espelho,
sem repetição,
sem a tirania do agora.
que venha o tempo humano,
aquele que carrega o gosto da terra,
do suor que é meu e não de ninguém mais.
basta de ser sombra sob os ponteiros
basta de ser número no alvo
a hora que me roubam,
a hora que me negam,
a hora que peço,
revoluteia,
na insurgência que esvoaça a alma.
cativeiro invisível
o homem é pássaro
que esqueceu o voo,
preso num cativeiro invisível
feito de números e metas.
as asas estão lá,
mas pesam,
não se abrem mais.
e o canto,
antes vibrava livre,
agora sussurra fraco,
preso nas grades do cotidiano.
ainda sopra o vento,
e o céu persiste.
e um dia,
quando lembrar
que o cativeiro nunca foi real,
as asas se abrirão,
o canto voltará,
e ele verá que sempre foi livre.
terra de nós dois
planto meu cansaço em teus olhos,
e eles me devolvem um jardim.
teu amor é a terra onde descanso,
o lugar onde deixo de ser ferramenta
e volto a ser semente.
em ti,
não há correntes nem grades,
apenas revoluteios.
o canto do horizonte
canções amargas se perdem no vale,
no alto, onde pertenço, só ouço o vento.
homens cavando suas próprias covas,
enquanto eu, pacientemente, crio.
a luz brilha lá nas alturas,
seguindo, passo após passo,
resoluto e instintivo,
busco a promessa eterna.
sinos tocam, noite e dia,
no desconhecido, vida a crescer.
a manhã desperta,
escuto outra vez a canção.
Mayk Oliveira nascido em 1982 na cidade Delmiro Gouveia, no alto sertão de Alagoas é poeta, escritor, colunista da Revista Navalhista, músico, fiscal sanitário e professor de Língua Portuguesa e História. Ambientalista por essência, cultiva uma roça orgânica com flores e plantas nativas. Autor de textos de vários gêneros literários e com produção iniciada nos anos 2000, participa da antologia Novos Poetas Alagoanos Cena #1 (Parresia,2020) e da plaquete Tempo Lembrado (Forja,2023). Publicou os livros de poemas O Livro dos Delírios (Parresia, 2020) e de forma independente o livro Pétrino Astéri (2021). Revoluteia, seu o novo livro de poesia, foi lançando no inverno de 2025 pela Urutau.
*Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.



Redes Sociais