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Thalita Coelho lança Ressaca, romance que atravessa luto, maternidade e memórias soterradas

 por Taciana Oliveira | 



Thalita Coelho lança "Ressaca", romance que atravessa luto, maternidade e memórias soterradas


A escritora e professora catarinense Thalita Coelho apresenta ao público seu novo romance, “Ressaca” (orlando,2025), uma obra que atravessa as zonas profundas do luto, da maternidade e das memórias que insistem em retornar, mesmo quando tentamos silenciá-las. Com uma escrita que alia sensibilidade e força, a autora constrói uma narrativa marcada pelo realismo fantástico, recurso que utiliza para iluminar temas como abuso sexual infantil, violência, relações sáficas e estruturas familiares não normativas.


O livro acompanha duas personagens centrais: Marcela, uma professora que tem sua vida abalada após a perda de uma aluna, e Leo, sua filha, cuja existência reverbera traumas antigos. A relação entre ambas conduz o leitor por uma história de camadas íntimas e políticas, em que o afeto, o medo, a culpa e a sobrevivência se entrelaçam. A obra traz ainda prefácio de Monique Malcher e texto de orelha de Nalü Romano.


A inspiração para o romance parte de um acontecimento que marcou a autora: o suicídio de uma ex-aluna. Thalita relata que “Ressaca” nasceu da experiência da “interrupção brusca da vida”, um choque que abriu feridas antigas e motivou a escrita. Entretanto, o livro não se limita ao trauma. Ele também é atravessado pelo nascimento de seu filho, Ravel, experiência que a autora descreve como um gesto capaz de “acalmar o luto das duas mães” e que sustenta sua compreensão de que vida e morte são processos inseparáveis, “dois lados da mesma moeda”.


Escrito ao longo de cinco anos, o romance acompanhou um período de intensas transformações pessoais da autora, casamento, gravidez e a perda da avó, resultando em uma obra permeada por simbolismos e tensões emocionais. Ambientado no litoral catarinense, “Ressaca” utiliza o mar como força narrativa e metáfora. A autora, que cresceu em cidades litorâneas, destaca  que isso  é parte essencial de sua escrita, um simbolismo de memórias que voltam, insistentes, tal como as ondas que avançam e recuam.


A vivência de Thalita como professora, pesquisadora e mulher lésbica orienta a construção das personagens e das relações que constituem a obra. O romance dá centralidade à relação sáfica entre Marcela e Pietra, bem como à experiência da dupla maternidade, ampliando o debate sobre afetos dissidentes e estruturas familiares que fogem ao padrão hegemônico.


Doutora em Literatura pela UFSC e semifinalista do Prêmio Jabuti com o romance “Desmemória”, Thalita reafirma com “Ressaca” uma escrita politicamente engajada, que desafia silenciamentos e se dedica a narrar vidas que historicamente tiveram sua voz suprimida. Seu novo livro se posiciona como uma linguagem de enfrentamento e reconstrução,  uma literatura que insiste em existir mesmo quando tudo ao redor parece ruir.


Abaixo uma entrevista com a autora:



1. Ressaca nasce de um evento traumático que você viveu como professora e que abriu feridas antigas. De que maneira esse episódio influenciou a construção emocional da narrativa e o modo como você aborda o luto na ficção?


Em 2018, perdi uma ex-aluna, ela tinha 15 anos. Um ano antes, eu lecionei na escola em que ela estudava e acabamos desenvolvendo uma relação de afeto, nos limites da relação professora e aluna, claro. Ela viu em mim alguém em quem podia confiar e me contou sobre uma série de abusos que vinha sofrendo no seio familiar. Isso acontecia desde que era muito pequena. Quando ela me contou, a acolhi e a avisei sobre os encaminhamentos que eu precisava fazer enquanto profissional responsável por relatar casos assim, então levei tudo para a orientação escolar, que tomou as providências necessárias. Ela então passou a ser acompanhada de perto por profissionais de saúde mental. Em 2018 eu já não estava mais em sala de aula, havia acabado de ser contemplada com uma bolsa de doutorado, então passei a me dedicar somente à tese. Minha aluna ainda falava comigo periodicamente, relatando como andava o tratamento psicológico e psiquiátrico, dizendo que sentia falta das minhas aulas, pedindo ajuda em alguns trabalhos. Em outubro de 2018, recebi uma mensagem da supervisora da escola me contando que ela havia falecido, vítima de suicídio. Aquele dia passou como um borrão, não tenho muitas memórias sobre como passei as horas entre o recebimento da notícia, no início do dia, e o momento em que finalmente me levantei zonza para ir até o velório. Aquela foi uma das piores experiências que vivi, ver um corpo tão jovem num caixão, aquele tanto de crianças e adolescentes chorando e me abraçando. Não tenho memórias visuais vívidas, pois tenho afantasia, em compensação, me lembro bem do cheiro e da música que tocava no dia (os amigos colocaram as músicas que ela mais gostava para tocar). Durante anos fiquei sem conseguir ouvir a música, se eu a escutava, era imediatamente invadida por tudo que senti quando a vi no caixão. Apesar da dor, lembro com muito carinho da minha Bia, ela foi e ainda é minha aluna favorita. Tudo isso me marcou muito pelo sofrimento que a vi passando, mas também porque reencontrei a mim mesma ainda criança, lidando com as sequelas de ser vulnerável e ficar à mercê da manipulação e do desejo de homens adultos. 


2. O romance entrelaça maternidade, lesbianidade, abuso infantil e memórias, temas muitas vezes silenciados ou tratados com estigma. Como foi para você transformar essas experiências pessoais e coletivas em matéria literária?


Como eu mesma fui marcada pelo abuso infantil, tive minhas memórias afetadas por esse trauma: muita coisa é desfocada, sem detalhes; me sobram os sentimentos de tudo, esses parecem que nunca vão embora. Além disso, o processo de saída do armário, de bancar para o mundo minha sexualidade, minhas relações e a formação de uma família não normativa, estruturaram minha subjetividade, me situando em lugares que apenas alguém LGBT e sobrevivente de abuso infantil pode acessar. Embora as memórias ainda sejam fragmentadas, aos poucos tenho trabalhado em terapia minhas questões e, claro, tudo isso reverbera também na minha criação literária. Minhas memórias, as vivências de quem vive comigo, os afetos que cultivo, tudo de alguma forma compõe minha literatura, mas de um jeito nada biográfico, tudo passa por um intenso processo de transformação, recriação, refletido, muitas vezes, num realismo mágico como estratégia para lidar com dores pontiagudas demais para serem abordadas literalmente. Essa estratégia literária é uma forma de escapar do lugar de pessoa vitimizada que revive o trauma constantemente, e se desenha como um convite para a reelaboração do aspecto coletivo desse trauma, inventando algo a partir dele, algo potente e útil. 


3. O mar aparece como uma força narrativa central, quase como um personagem que arrasta lembranças e corpos. Por que o litoral catarinense e a simbologia marítima são tão determinantes em sua escrita, especialmente em Ressaca?


Nasci e cresci no litoral catarinense e, com exceção dos 5 anos que vivi em São José dos Campos, interior de São Paulo, sempre morei em cidades litorâneas. O mar faz parte das minhas primeiras memórias e sempre foi uma espécie de refúgio, ao mesmo tempo, em que se apresenta como algo misterioso e grandioso a ponto de amedrontar. Nas culturas de matriz africana, especialmente no campo das epistemologias de macumba, o mar é o reino de Iemanjá, onde há vida mas também há morte; ele é a calunga grande, o grande cemitério, que recebeu os corpos de milhares de escravizados durante a travessia e dos marujos que partiam enquanto embarcados. Enxergo essa profunda dualidade entre vida e morte em todos os aspectos da vida, elas são dois lados da mesma moeda e andam mais juntas do que gostaríamos de admitir. As fronteiras entre vida e morte são como as ondas, vão e vem, nunca sabemos o que o mar pode trazer para a beira da praia - ou levar para o infinito marítimo. 


4. A narrativa fragmentada é apontada como uma das marcas do livro. Como essa escolha formal dialoga com os processos de trauma, recuperação e reconstrução que movem Marcela, Leo e outras personagens?


Quando escrevi Desmemória (2020), meu primeiro romance, semifinalista do Prêmio Jabuti, eu ainda não havia amadurecido o suficiente para abraçar a fragmentação do meu próprio pensamento. Hoje, relendo a obra, vejo como tentei deixar a narrativa menos fragmentada do que ela surgia para mim. Em “Ressaca”, adotei essa característica de peito aberto, provavelmente porque não havia outra opção naquele momento:  me deparei com a perda de minha ex-aluna, com um divórcio, um novo casamento, uma gravidez e, antes que meu filho pudesse nascer, com a morte de minha avó paterna, que foi em grande medida como uma mãe para mim, por auxiliar minha mãe em meus cuidados, já que esta era apenas uma menina de 16 anos. Tudo isso ocorreu durante a escrita de Ressaca. Quando nosso filho nasceu, eu me vi conhecendo alguém que já amava muito, mas num momento de profunda tristeza, de luto, de puerpério. Dito isso, para além de uma escolha formal de utilizar uma narrativa fragmentada, abracei esse vaivém, essa descontinuidade tão própria dos processos de trauma e recriei a sensação de luto, abandono, de vulnerabilidade nas histórias de Marcela e Pietra, Leo e Amara e, também, Bia. Cada uma trabalhará com seu trauma de diferentes vieses, porque são pessoas diversas, com personalidades únicas, embora todas elas estejam conectadas. Até mesmo os personagens não humanos da obra aparecem como uma metáfora do trauma que transmuta a vítima na sua dor, deixando ver no exterior a imundície criada pelo abandono, pela violência e, muitas vezes, infligindo o mesmo a todos a seu redor.


5. Ressaca também aborda relações lésbicas e em configurações familiares não normativas, reforçando uma literatura politicamente comprometida. De que forma você enxerga o papel da escrita sáfica e da dupla maternidade na literatura brasileira e qual a importância de ocupar esses espaços?


A quantidade de famílias não normativas no Brasil tem aumentado — se é que podemos dizer isso, já que a própria ideia de família tradicional brasileira, pai, mãe e filhos, não é a realidade da maioria dos brasileiros e brasileiras. Ainda assim, temos visto um aumento considerável em lares com dois pais, duas mães, duas mães e um pai e assim por diante, ou seja, diferentes configurações familiares representadas num crescimento de 552,4% em 12 anos, segundo o Censo de 2022. Acredito no poder transformador de dar voz a essas famílias que não reproduzem a sistemática opressora que impõe como uma família deve ser formada. A importância de se ocupar esses espaços precisa ser salientada para compor o imaginário social, a consciência coletiva de que existimos, criamos famílias, vivenciamos a vida como qualquer ser humano —  mas com alguns obstáculos a mais no caminho. A literatura sempre foi capaz de moldar/refletir a sociedade, mas é preciso que outras vozes sejam escutadas. Não é que eu tenha intenção de me comprometer politicamente na literatura, mas a minha existência e a minha experiência de vida são vistas como políticas, de modo que não me sobra outra escolha se eu quiser fazer uma literatura que respeite minha trajetória.



 


Thalita Coelho é escritora, professora e doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Lésbica e mãe, sua trajetória pessoal e intelectual se entrelaçam em uma literatura marcada pelo afeto, pela resistência e pelo protagonismo de vozes dissidentes. Estreou com "Terra Molhada" (2018), uma coletânea de poemas, e publicou o romance "Desmemória" (2020), semifinalista do Prêmio Jabuti. Sua obra literária cruza a memória e a resistência, sempre com um olhar sensível e aguçado para as complexidades humanas.





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FICHA TÉCNICA

Livro: “Ressaca"

Autora: Thalita Coelho

Número de páginas: 102



*Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.