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por Renato Fonseca__




Morava ainda na praia. Tinha cinco anos. Esmeralda, quatro. Todo dia sua mãe lavava a roupa pela manhã, estendia ao sol, depois passava um pano pela casa, lavava os banheiros. As meninas almoçavam pão. Enquanto o jantar cozinhava, ela passava o pano mais uma vez, limpava os vidros. Os brinquedos não podiam sair das prateleiras, só uma ou outra boneca, sem bagunçar a casa. O dia ia nessa limpeza, dos cantos e dos detalhes. O jantar ia para a mesa e depois vestia as filhas com roupas de festa, que serviam para ficar em casa ou ir à igreja no domingo. Sempre os mesmos vestidinhos e, em Esmeralda, uma fita rosa no cabelo. Daí em diante, não podiam brincar para não se sujarem. Não podiam comer ou beber, para não bagunçar a casa. Ficavam sentadas, esperando por horas, as vezes noite adentro, o momento em que seu pai chegaria. A mãe mantinha-se à beira de um choro que nunca vinha, Esmeralda, cansada de não fazer nada, dormia sentada no sofá. Ivone aguentava, chupava balinhas escondida da mãe, guardava as embalagens dentro do sofá. O pai chegava e as brigas começavam. A mãe, enfim, chorava na cozinha, o pai vinha cambaleante para a sala, chamava-as “minhas doçuras”, entregava balas para as duas, um beijo em cada uma. Iam se sentar para ouvir o rádio, não importava a hora. O caminho era feito com Esmeralda no colo e, com o pai sentado em sua poltrona, lá ficava. Ivone andava e tinha que se sentar no chão. “Por que Esmeralda é que vai no colo do papai, mamãe?” perguntou certa vez, ao que obteve como resposta, além de um sorriso azedo, “Não pergunte, Ivone, pelo amor de Deus, não pergunte, vai incomodá-lo.” A menina insistiu na dúvida. “Assim você só piora as coisas, Ivone! Você piora tudo!” Um dia, encontrou a sua resposta: a fita rosa. Oh! Como era sublime! O modo como prendia a trança da irmã, fazia com que ela parecesse um lindo presente! Precisava dela, daquela fita! Ofereceu à irmã caçula todas as suas balas e conseguiu o que queria. Neste mesmo dia, trançou o cabelo, colocou a fita e esperou. A mãe, é claro, não aceitou a troca, ficou muito nervosa, tentou arrancar a fita rosa à força, tirando tufos de cabelo, mas Ivone se manteve firme, defendendo-se com suas mãozinhas e correndo pela casa. Esmeralda chorava, a mãe disse: “Você piora tudo, tudo!”, mas cedeu à fita na trança bagunçada da mais velha. Esperou o pai chegar, a briga começar. Sem balinhas para pôr na boca, chupando a saliva, sorriu quando ouviu sua mãe chorar na cozinha. Logo ele viria para elas e seria ela quem se sentaria no colo dele. Esmeralda ficaria no chão. Ajeitou a fita no cabelo. Quando o pai se endereçou as duas e disse com seu hálito estranho da noite “minha doçura”, entregou balas apenas para a irmã e, ainda por cima, foi escutar música com ela no quarto. Sequer a olhou. O que teria acontecido com “minhas doçuras”? Foi aí que sentiu aquele gosto ruim na boca. Uma ânsia insuportável subiu por sua goela. Tentou vomitar no banheiro, pensou em ir ao quarto reivindicar atenção, onde o pai e a irmã estavam sem dar qualquer falta dela. “Você estraga tudo, Ivone”. O gosto não saia, o vômito não vinha. Viu seu reflexo na água da privada. Buscou entender, procurou em si mesma onde estava o problema; será que havia prendido a tranças de modo errado? Foi no espelho que encontrou, um aspecto rude, com olhos pertos demais um do outro, sobrancelhas excedidas, arcadas para baixo. O nariz era uma batatinha, com as cavidades voltadas para cima e a boca, bom, a boca era torta, com os lábios finos, os superiores maiores que os inferiores, provocado por um queixo que ia para dentro. Não era a fita que deixava Esmeralda linda e doce. Percebeu que aquele amargo era ela.”

 

*trecho do livro "O último homem bom" (Editora Paraquedas, 2022), de Renato Fonseca





Renato Fonseca
- Paulistano, Renato tem 36 anos e é pai de três crianças (Dora, Tom e Teresa). Além de escritor, psicólogo e supervisor clínico, é mestre em filosofia. Trabalhou durante anos em instituições de saúde mental e psiquiátricas e possui ampla experiência no atendimento de pacientes com quadros clínicos graves, como psicose e esquizofrenia. Também trabalhou como professor universitário e supervisor de estágio. O último bom homem é seu livro de estreia e reflete seu caminho de se aproximar das dores e aflições da existência humana.


por Marcela Güther e Taciana Oliveira__


Fotografia: Christine Schon