Entre a rigidez e a entrega | entrevista com Renato Fonseca


por Marcela Güther e Taciana Oliveira__


Fotografia: Christine Schon




Entre repulsa, amor e violência, Renato Fonseca estreia com obra que mergulha nas dores humanas

 

Lançado pela editora Paraquedas“O último bom homem”, conta com orelha escrita por Felipe Ramos, do PapodeHomem, e quarta capa assinada por Alexandre Coimbra Amaral.

 

“[...] um dos melhores livros de estreia ficcional de um autor brasileiro dos últimos tempos. Fui inundado pela beleza de um estilo visceral na narrativa e de personagens que se vincularam à minha alma imediatamente. É um presente, um banquete, um acontecimento.”

 

Alexandre Coimbra Amaral, psicólogo e escritor, na quarta capa

 

 

 

“A partir de um espelho feio, porém real, de nossa sociedade, e em situações banais e cotidianas, atravessadas de capacitismo e machismo, somos convidados a olhar com repulsa a nossa própria imagem, em uma leitura envolvente, ácida e poderosa que prende a atenção do início ao fim do livro.”

 

Felipe Ramos, co-fundador do PapodeHomem & Instituto PDH, na orelha do livro

 

 

O psicólogo paulistano Renato Fonseca estreia na literatura chamando o leitor para viver uma história de ficção com fortíssimos toques de realidade. Em uma narrativa descritiva e envolvente, lança “O último bom homem” (Editora Paraquedas, 2022, 302 pág.) — livro que, a partir da relação entre personagens à margem da sociedade, um pai alcoólatra e um filho com deficiência, aborda as dores e as aflições da alma humana, adentrando em suas particularidades e sutilezas. A obra perpassa temas como machismo e capacitismo.

 

 

 

No livro, debaixo de pilhas de cigarro, garrafas de bebida e emoções nocivas, Teobaldo e Júlio, pai e filho — o pai, alcoólatra, e o filho, uma pessoa com deficiência — vivem uma rotina melancólica e agressiva. Quando pequenas fagulhas começam a queimar o tecido rígido do cotidiano, os personagens são obrigados a se deparar com passado e presente, vícios e delírios. A cada cigarro de Teobaldo, o leitor é tragado para a construção da complexa intimidade de ambos, acompanhando a trajetória desses homens em busca de algum sentido em meio a um mar de angústia. Apesar das duras questões apresentadas ao longo do livro, trata-se de uma história de amor.

 

 

“Essa relação de pai e filho é explorada em uma narrativa detalhista e minuciosa que busca trazer ao leitor duras reflexões, dentre as quais, sobre as prisões que os homens vivem ao buscar uma masculinidade frágil que tem de ser provada a todo instante”, escreve Felipe Ramos, co-fundador do PapodeHomem & Instituto PDH, na orelha do livro. “Ao longo da história, o autor nos confronta com diversas situações de preconceitos do personagem central com seus entes mais próximos. A partir de um espelho feio, porém real, de nossa sociedade, e em situações banais e cotidianas, atravessadas de capacitismo e machismo, somos convidados a olhar com repulsa a nossa própria imagem, em uma leitura envolvente, ácida e poderosa que prende a atenção do início ao fim do livro.”

 

Com 34 anos, Renato é pai de três crianças (Dora, Tom e Teresa). Além de escritor, psicólogo e supervisor clínico, é mestre em filosofia. Trabalhou durante anos em instituições de saúde mental e psiquiátricas e possui ampla experiência no atendimento de pacientes com quadros clínicos graves, como psicose e esquizofrenia. “Como psicólogo, meu trabalho é escutar. É preciso dar vazão à dor e dar sentido aos afetos e sentimentos renegados à borda, encontrar outros caminhos junto àquele que, no meu consultório, me confia a sua história. E se essa história é de violência e dor, é preciso trazer para perto, integrar”, diz.

 

Renato frisa que seu livro não é temático. “O principal de ‘O último bom homem’ é a complexidade da dor humana dentro de vivências, trajetórias e histórias de vidas particulares”, explica o autor. “Isso pode ser tematizado, é claro, temos ali a questão do machismo, do capacitismo, entre outras, que são temas centrais e urgentes para a nossa sociedade hoje e de onde origina boa parte de nossos sofrimentos. Mas, no meu livro, esses temas não são centrais,  o central é a vivência de personagens que se encontram na margem. O encontro entre borda e centro gera a tensão necessária para provocar o leitor a olhar e trazer para perto os limites particulares e coletivos. Isso é capaz de gerar perspectivas, e tanto a literatura como a psicologia carregam essa função: perspectivar a si mesmo e nossa sociedade”, argumenta.

 

 

Além do “masculino”

 

 

O escritor demorou sete anos para finalizar seu livro, passando por diferentes motivações para concluí-la. “Primeiro, quis que as pessoas sentissem, tinha essa inquietação: por que estamos consumindo cada vez mais notícias sangrentas e filmes violentos, em um tempo cada vez mais acelerado? Achei que era porque estávamos cada vez mais anestesiados (com ansiolíticos e telas), distanciados de nós mesmos e do mundo, e precisávamos de estímulos cada vez mais intensos para sentir algo. Trabalhava em um ambulatório psiquiátrico, exclusivamente com casos de esquizofrenia e psicose. Tinha a convicção que este público lançado à margem da sociedade era, dentre outras coisas, sintoma de uma sociedade que vive à margem de si mesma e de seus afetos. Quis escrever um livro simples, sem nada de espetacular, mas que fosse capaz de, em um tempo demorado, fazer as pessoas sentirem cada afeto que os personagens sentem, se des-anestesiarem”, explica. “Depois virei pai três vezes, a cada vez me abriu novas perspectivas e motivações que se somavam. Na paternidade, senti a necessidade de entrega e envolvimento afetivo, algo que estava à margem por conta do homem que eu era. Eram noites e mais noites ninando crianças e pensando sobre isso, sobre o livro. Passei a entender o livro como um caminho entre o que hoje chamamos, vulgarmente, de masculino e feminino. Entre a rigidez e a entrega. O concreto e o sutil.”

 

 

Outra motivação foi 2018, com a eleição de Bolsonaro, na qual “o esgoto saiu do bueiro”. “O fedor daquela eleição já estava no livro, que ganhou também motivação política enquanto acompanhava diversos casos de violência, cada vez mais cotidiana, normalizada e institucionalizada. Mas tudo isso também acontece dentro de um indivíduo com suas dores e perturbações, incapaz de escutar a si, aos outros e as diferenças”, justifica. “Sinto vontade de compreender de onde as coisas vêm e para onde vão. Me aprofundar no outro e para o outro, descrever o que encontro ali por baixo, para ver como o leitor pode se sentir e, quem sabe, colocar tudo isso em perspectiva”, expõe Renato, que, durante a pandemia, reescreveu seu livro, de ponta a ponta, três vezes até chegar na última versão de “O último bom homem”.

 

 

Entre Cervantes e Knausgård

 

Em casa, cada pessoa tem um altar com aquilo que lhe é mais valioso. Santas, Orixás, brinquedos ou livros. No de Renato estão Fiódor Dostoiévski, James Joyce, Miguel de Cervantes e João Guimarães Rosa. Embora no altar tenha apenas clássicos que de diferentes formas influenciaram sua escrita, tem buscado se dedicar a autoras e autores contemporâneos, cita Jeferson Tenório, Karl Ove Knausgård, Natalia Timmerman, e Elena Ferrante“Minha companheira me questionou como eu poderia escrever sobre o feminino se eu lia tão poucas mulheres. Embora masculino e feminino não se restrinjam respectivamente a homem e mulher, ela estava coberta de razão”.

 

Renato gosta de trabalhar com imagens, metáforas e símbolos em sua escrita. “Quero aprofundar o máximo que puder a alma dos personagens, nas suas sensações, percepções, medos e desejos. Quero que as pessoas sintam os cheiros que os personagens sentem, que deixem doer nelas o que está ali na página. Sou obsessivo com isso. Isso e os detalhes que vou apurando das imagens que me tomam”, frisa o autor, que escreve há cerca de dez anos e atualmente trabalha na escrita de seu segundo livro que, segundo ele, conta a história de uma mulher que se depara com um semideus.

“É de certa forma um desdobramento daquilo que busquei com o primeiro livro e dos temas adjacentes, presentes no meu processo de vida. Abordo a questão do divino, do mistério e do envolvimento, repudiando nossa perspectiva de nos des-envolvermos infinitamente e de asfaltarmos cada centímetro quadrado daquilo que não conhecemos”, pontua.                        

Segue a entrevista com o autor:


1 - De que maneira a sua formação profissional contribuiu na concepção do perfil psicológico dos personagens em “O último bom homem”?

 

Como psicólogo, parte do meu cotidiano é escutar as mais diversas narrativas que chegam no consultório. A escuta me ajuda a tecer junto ao paciente, aos poucos, quem ele é, com suas camadas, conflitos, contradições, sofrimento. Ao lado desta postura há, evidente, uma teoria que sustenta a prática, e neste ponto a passagem da psicologia para a literatura pode ser muito traiçoeira. Há de se evitar, de qualquer modo, o psicologismo que busca respostas prontas, lançar luz aplicando de forma violenta teorias que podem não corresponder tanto ao paciente quanto ao personagem. Evito, absolutamente, rotular meus pacientes e personagens, não há nada mais chato na literatura do que um personagem que é apenas a aplicação escarrada de um conceito. Na clínica e na literatura, frente ao outro, há um processo de descobrimento, de libertação e também de humildade frente ao mistério. Meu passo decisivo para a literatura foi aprender a escutar meus personagens e, nesse processo, ir tecendo a narrativa a partir de pontos centrais de conflitos e vivências de cada um deles, criando um padrão de como eles são e agem no mundo, quais os principais afetos em jogo, mas aceitando que não preciso explicar ao leitor tudo sobre o perfil psicológico e aceitando também que eu não devo saber tudo sobre meus personagens. Permito, assim, que eles se revelem ao longo da escrita para mim de formas que nem eu mesmo esperava.

 

 

2 - Na tua escrita há referências autobiográficas? Você traz parte de sua experiência pessoal para seus livros?

 

 

Há referências cotidianas, mas estas são vagas e não necessariamente compõem de forma decisiva a minha biografia. Algo que vi na fila do supermercado, um sonho qualquer, algo que escutei tomando um café, uma notícia de jornal: me chega como um estalo “preciso escrever sobre isso”. Uma vez estava voltando da escola com a minha filha e vimos um cachorro ser atropelado. Tem o ferro, o motor, o barulho, a carne, o sangue. A sensação. É uma imagem forte, triste, como não fazer disso literatura? Coloquei no livro. O cotidiano é fascinante, cheio de imagens que me invadem e preciso descrevê-las. A dimensão subjetiva dos personagens, na descrição detalhada de afetos diversos, também passa por afetos que vivi, que experimentei, mas não necessariamente relacionado a experiências autobiográficas específicas, são adaptados aos personagens. Agora, meu segundo livro que deve sair no ano que vem, este já tem mais referências autobiográficas, é baseado em um sonho que tive e a protagonista (uma mulher) e boa parte da sua complexa subjetividade fala de mim. O terceiro, acabo de começar, este é basicamente uma autoficção.

 

3 - O que você destacaria em “O último bom homem” em termos de elaboração criativa e estrutural? O quê na essência desse livro repercute em você?

 

 

Para criar, gosto muito de trabalhar com imagens e metáforas. Trabalho assim no consultório, também. Por vezes, descrevo imagens que por si só já possuem um grande valor, falam por si. Em outros momentos, essas imagens me oferecem uma série de metáforas que ampliam a cena do livro, fazendo a imagem transbordar. Por fim, faço com que estas imagens e metáforas também estejam relacionadas ao campo existencial dos personagens, criando um ambiente afetivo na narrativa, com a atmosfera afetada pela disposição de quem está ali. A sujeira, a bagunça, os corpos errantes descritos são criados refletindo a atmosfera dos personagens. Isso é essencial para mim, é o que mais repercute tanto como escritor, como psicólogo: criar essa ressonância nas páginas e nas conversas.

 

Essa essência está na estrutura do livro. Acho que é estrutural na narrativa a forma como faço a construção de subjetividades. Ela não se revela fácil, o cotidiano é descrito com detalhes objetivos permeados pela disposição do personagem. O próprio narrador é permeado e influenciado por eles: quando Teobaldo está bêbado, há uma confusão com o próprio narrador, ou quando Júlio está protagonizando, a narrativa muda, discretamente, de lógica. No percurso, afetados pelo cotidiano caótico, os personagens vão se lembrando e se deparando aos poucos com seus conflitos, cada momento traz uma faceta, uma camada que o leitor vai descobrindo junto com o personagem. Com a descrição detalhista, com a angústia ou a felicidade dos personagens ecoando pelas páginas, espero que os leitores sintam de verdade o que os personagens sentem.

 

4 - Quando e como se inicia os primeiros passos para a concepção de O último bom homem?

 

 

Primeiro, quis que as pessoas sentissem, tinha essa inquietação: por que estamos consumindo cada vez mais notícias sangrentas e filmes violentos, em um tempo cada vez mais acelerado? Achei que era porque estávamos cada vez mais anestesiados, com ansiolíticos e telas, distanciados de nós mesmos e do mundo, e precisávamos de estímulos cada vez mais intensos para sentir algo. Quando comecei a escrever este livro, há 7 anos, trabalhava em um ambulatório psiquiátrico, exclusivamente com casos diagnosticados pelos psiquiatras com esquizofrenia e psicoses. Tinha a convicção que este público lançado à margem da sociedade era, dentre outras coisas, sintoma de uma sociedade que vive à margem de si mesma e de seus afetos. Quis escrever um livro simples, sem nada de espetacular, mas que fosse capaz de, em um tempo demorado, fazer as pessoas sentirem cada afeto que os personagens sentem, se des-anestesiarem. Depois virei pai três vezes, a cada vez me abriu novas perspectivas e motivações que se somavam. Na paternidade, senti a necessidade de entrega e envolvimento afetivo, algo que estava à margem por conta do homem que eu era e, de várias formas, isso estava na relação de pai e filho no livro. Eram noites e mais noites ninando crianças e pensando sobre isso, sobre o livro. Passei a entendê-lo como um caminho entre o que hoje chamamos, vulgarmente, de masculino e feminino. Entre a rigidez e a entrega. O concreto e o sutil.

 

5 - Sua obra levanta questões sobre o machismo e capacitismo em figuras que sobrevivem a uma rotina solitária e amarga. Fale da sua experiência de abordar esses temas a partir do relacionamento de um pai e um filho.

 

Como preconceitos, tanto o machismo como o capacitismo são estruturantes em nossa cultura. Parte do papel de um pai é apresentar esta cultura para o filho, de modo que podem acabar passando adiante valores preconceituosos, naturalizando-os. No livro, o filho é uma pessoa com deficiência, vítima do capacitismo do próprio pai, que é vítima e carrasco do machismo. O encontro dos dois, em meio às amarguras, em uma lenta aproximação tem um grande potencial de mobilização, tanto na relação entre os personagens, como na relação entre leitor e personagens. Digo isso porque, embora haja muita informação sobre estas temáticas urgentes (ainda mais em tempos de ódio bolsonarista), só a informação não é o suficiente para derrubar estas estruturas. Acredito que o fundamental é a possibilidade de vivências carregadas de afeto e sentido, que criem a abertura que reforce a alteridade, a convivência, a aproximação entre as diferenças. O livro permite ao leitor se aproximar intimamente de Júlio, o filho, pessoa com deficiência, mas também muito mais que isso. Permite empatizar com um homem odioso como Teobaldo, o pai. Ao longo da história, vamos nos mobilizando em torno desses dois homens, da relação deles, nos familiarizando com a história deles. Nisso, o leitor se depara com o seu próprio capacitismo e machismo, mas, carregado de afeto e sentido em sua relação com os personagens, pode ir além: desconstruir os preconceitos e se aproximar da possibilidade da alteridade.




Renato Fonseca
 - Paulistano, Renato tem 36 anos e é pai de três crianças (Dora, Tom e Teresa). Além de escritor, psicólogo e supervisor clínico, é mestre em filosofia. Trabalhou durante anos em instituições de saúde mental e psiquiátricas e possui ampla experiência no atendimento de pacientes com quadros clínicos graves, como psicose e esquizofrenia. Também trabalhou como professor universitário e supervisor de estágio. O último bom homem é seu livro de estreia e reflete seu caminho de se aproximar das dores e aflições da existência humana.





Marcela
 Güther - Sócia e diretora de conteúdo e relações públicas na com.tato. Está à frente do serviço de assessoria literária, auxiliando autores e editoras a divulgarem seus trabalhos na mídia. Já foi redatora de portais de literatura e revisora de livros e publicações literárias. Organiza o clube Leia Mulheres de Joinville (SC) desde 2017.

 





Taciana Oliveira – Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta e comunicóloga.  Na vitrolinha não cansa de ouvir os versos de Patti Smith: I'm dancing barefoot heading for a spin. Some strange music draws me in