A poesia às vezes vem como biscoito da sorte

por João Gomes__

Na apresentação de O nome do mundo (Armazém da Cultura, 2014), livro anterior da mineira Adriane Garcia, o crítico literário José Castello sobre sua poesia escreve: “na realidade, não é no mar que a poeta mergulha, mas no abismo.” É muito emocionante poder tomar conhecimento de todas essas águas que percorrem a produção mais recente de seu novo volume, o Garrafas ao mar (Penalux, 2018), quando a poeta, depois de ficar Só, com peixes (Confraria do Vento, 2015) — outro livro que por ter uma unidade temática constante teve o prazer de nos fazer mergulhar talvez com menos força que este último — é chegado o momento de encontramos tudo o que lançou no mais profundo mistério da existência.
Desde seu primeiro livro, Fábulas para adulto perder o sono (Biblioteca Paraná, 2013), vencedor do Prêmio de Literatura do Paraná, que a poesia brasileira não foi mais a mesma. Enquanto leitor constante do que se produz de excelente e de mal estruturado, sempre me surpreendi com o que li desta poeta. Mas resenhar o livro de uma poeta contemporânea, com uma produção tão constante e atual pode parecer tarefa fácil, quando sabemos o quanto é responsabilizador dizer algo que se some ao já dito.
De toda forma, não consigo seguir sem antes dizer que a poesia de Adriane carrega referências das mais variadas, menções que a poeta chamaria de fábulas, fazendo do poema sempre um exercício que retroalimenta o real e o imaginário, quer seja ele popular, infantil, filosófico, plástico ou mesmo metapoético. Em tempos de poesias tão insípidas e confesiobanais, a poeta escreve com o treino para perder o sono quando em “Dos encantamentos” escreve “Por muito tempo treinei / Encantamentos / Confesso que / Num concurso / Ganhei primeiro lugar // Agora desencanto / Para poder aprender novas magias: E pau é pau / Pedra é pedra.”
Como todo poeta de ofício, corre riscos, revendo o cotidiano encontrado com seus olhos de pitonisa, sabendo que o poema pode ser um quadro feito de versos ou formas que de antemão o leitor nunca deveria se cansar de mirar. Melhor dizendo, é como se a poeta pintasse seus versos e emoldurasse na página com um título tão certeiro à força que guarda o objeto. No poema “Nua”: “Poesia, meu cansaço tu / Carregas e causas.” Sendo mineira, contemporânea de Drummond, com sua poesia faz críticas não tendo “... nuvens de calças / Nem a calma / Para olhar as vidas bestas / Das janelas”, sendo esta uma imagem bem marcante nas ladeiras históricas de Minas. Mas a crítica aí não desqualifica o poético drummondiano, estando ambos em diferentes épocas, assim como fez o poeta de Itabira em A rosa do povo quando se inicia a Segunda Guerra Mundial. Assim como ele, Adriane também não quis ser “poeta de um mundo caduco”, verso do livro O sentimento do mundo, pois pra ambos “O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes, a vida presente.”
Mas se engana quem acredita que se render a grande figura drumondiana, verdadeiro pai da poesia mineira e o maior poeta de nossa poesia, Adriane, sendo mulher, em referência direta à poesia de Adélia Prado que questionou a servilidade e dependência feminina de uma época, sobre essa independência aos grandes poetas e aos maridos, ainda em “Nua” escreve: “Não / Ninguém trouxe meu peixe / Para o jantar / Menos ainda / Levantou-me a saia / Na cozinha”, porque em tempos de um feminismo fortalecido, “O berro que eu dei / Eras tu / Poesia.”
Intuo que Adriane não quer se colocar, apenas por se colocar, no cânone de Academia — a mesma que preferiu deixar de fora de sua estrutura obsoleta a escritora Conceição Evaristo dando o título de imortal a um cineasta, não me questionando a qualidade cinematográfica do mesmo, este ano — e sim estar à frente dele, porque em “Um dia de cada vez” conclui que “Somando tudo / Dá zero // Garçom / Me vê só a dose de hoje”. A poesia que escreve recicla formas, pensamentos e, o mais importante na arte, faz perguntas sem trazer nenhuma resposta absoluta ou pós-verdade. Quando se compara à Christiane F., livro que leu seis vezes e eu também, diz: “Eu lia e escrevia como quem se / Picava.” Por isso é essa mulher que sabemos hoje por meio de sua produção poética.
Ética e estética se misturam, como na palavra estÉtica, não por pura coincidência dentro da seleção apuradíssima de Garrafas ao mar. A poeta sabe que com este título e, apesar do risco deste título, pelo que se pode oferecer, não sendo quaisquer “algas” que escorrem, sendo o poeta, “por ter aquele sinal à testa”, vai e sente mesmo que seu entendimento, no poema “Impenetrável”, acredite que “Nunca / Jamais / Vale.” O ser poeta habita o cerne da maioria dos poemas, com sua variedade de temas, intensidades, humores e intimidades com a morte e o amor. Nada escancarado mesmo com o poder da liberdade atravessando a “Hora de vestir, vestir / Hora de tirar, tirar // O carinho das palavras / Tem que ter medida // Se o cliente gosta / Se deve mesmo à firmeza / Ou sai um poema frouxo” do amarradíssimo “Entrevista com a cafetina”.


Sendo este o quarto livro da autora, cujo domínio não poderia deixar de surpreender com a seriedade e força de seu ofício, “Este veículo que sou / E que é peça na engrenagem” que lemos em “Trator”. Adriane escreve sem medo, porque, em “Inventário”, “Só a sétima fênix / É a verdadeira”, e nela perco-me na quantidade de vezes que reli este volume sabendo que me reencontro a cada nova garrafa encontrada. Assim como na epígrafe de Thais Guimarães, “Encontrei uma mensagem criptografada: / Poesia”. Das dificuldades de organizar cada garrafa encontrada, “Pedi socorro por tantos dias quantos foram / Os de minha vida / Também encontrei garrafas / Às quais não abri”, no poema que dá título ao livro.
Pois é justamente esta a sensação quando penso em quem nunca abriu sequer um biscoito da sorte ou, mais vastamente possível aqui, pôde encontrar estas garrafas submergidas de poesia. Por suas mãos nos foi servido o melhor vinho de uma safra iniciada em 1973, ano de seu nascimento, ou de 2013, ano da publicação de seu primeiro livro. Este que por aqui não encerro o que tenho a dizer entra na lista dos que sempre releio por inteiro, pela riqueza temática e possibilidade vasta de entendimentos numa forma tão enxuta dizendo tanto sobre tudo e todos. Porque o mar da existência é vasto demais para não irmos de mãos dadas e em tempos como estes, sabemos, ninguém solta a mão de ninguém.
                                                              ---------



Adriane Garcia

Adriane Garcia (Belo Horizonte, 1973) é poeta, escritora, teatroeducadora e atriz brasileira. Graduou-se em História pela Universidade Federal de Minas Gerais e se especializou em Arte-Educação na UEMG. Publicou as obras "Fábulas para adulto perder o sono" (Biblioteca Paraná, 2013, finalista do Prêmio Paraná de Literatura), "O nome do mundo" (Armazém da Cultura, 2014), "Só, com peixes" (Confraria do Vento, 2015), "Enlouquecer é ganhar mil pássaros" (Vida Secreta, 2015) e "Embrulhado para viagem", Coleção Leve um Livro, organização de Ana Elisa Ribeiro e Bruno Brum (2016). "Garrafas ao mar" é seu novo livro de poemas, publicado pela Editora Penalux.



A despeito de, poema dedicado a Marielle Franco, incluído em Garrafas ao mar. 
Narrado por Adriane Garcia. 


                                                ----



João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.