Jão nosso, conto de Adriano B. Espíndola Santos


por  Adriano B. Espíndola Santos__




Esfolam-me, como um bode, todos os dias. Esfolam o pobre, o lascado; o sem voz. “O Brasil, seu Fernando, é uma panela de pressão esculhambada; uma hora dessas vai estourar”.

Os vacilões, os toscos da CBF, os cidadãos de bem – e de boas intenções o inferno está cheio, já dizia vó –, vomitam na cabeça do morador de rua, na calçada da esquina, onde eu trabalho. Foda. A peleja nossa é ver o caos se repetir, todo santo dia.

Sábado passado, preparando uns pingado, uns pão na chapa, e duas vitamina de mamão, porra, escutei o grito abafado do Jão. Saí de avental, vexado, com o pau na mão. Sabia, algo me atinava a compreensão, que era mais um cidadão de bem espezinhando o cidadão. De fato, caralho, sem palavras, o coitado estava atolado no cimento; mãos torcidas muito fortemente para trás, em tempo de arrebentar osso e músculo com tudo; e um polícia espremendo sua cara no chão. Porra, insuportável para quem tem um pingo de sentimento, consegui ver uma banda do beiço e um pedaço do nariz, e o sangue pingando, pingando, feito torneira estrompada: na marra. Outros dois safados, risinhos sarcásticos, querendo dizer: “Relaxa, chapeiro, e só mais um vagabundo. Se vier, sobra pra ti”.

Jão mora ali há pelo menos dez anos. Chegou menino, com uns doze, talvez. Nunca o vi roubar, tretar com quem quer que seja; pelo contrário. O máximo, e se chega com jeito, é pedir um trocado para olhar ou lavar um carro; engraxar os sapatos dos passantes; e cuidar. Cuidar, essa é a palavra. O cara cuida de tudo, e como cuida bem. Para se ter uma ideia, cuida da Marina, filha da dona Samantha, da frente, quando a menina vai à parada esperar o busão. Cuida da dona Aglais, senhorinha de, sei lá, uns setenta a oitenta anos, sem filho, sem parente, nem nada. Ela sorri, de orelha a orelha, quando vê o Jão, pois que só ele, o sujeito carinhoso, acaba com o silêncio e com a solidão, de uma só vez. Cuida de dar a mão mesmo, limpar a casa; arrumar o jardim; preparar o caldo da velha; dar banho e limpar as cagadas dos bichos, e as dela também. Falando em bicho, o carinhoso tem dois cachorros, o Thor e a Neguinha. Thor foi o nome que o meu parceiro Denilson botou, fã dessas paradas de super-herói. Neguinha já veio Neguinha. Nega pra cá, Nega pra lá, ficou. Nós damos uns troços pros bichos comerem. Coisa boa, de primeira, quando o cliente enjeita, ou quando seu Fernando deixa. Todo mundo se arruma; ninguém fica de fora.

O carrasco pisava e me olhava, fixo, mórbido; pisava mais, querendo dizer: “E aí, vai encarar, assumir a bronca?!”. Parado, com sangue nos olhos, não tive, no ato, mãos para enfrentar os três sacanas. Mas devia fazê-lo, e logo, ou iam matar o cidadão, sufocado – mais uns segundos, e já era. Parei e fingi voltar às tarefas. Seu Fernando me chamava: “Bora, Luiz, cadê tu? Olha o serviço! Cliente aqui; cliente aqui, rapaz!”. Foda-se. Não aguentava mais. Os cachorros se agitaram, esperando por mim; tinha de agir. Passando uma bicicleta cargueira na minha frente, derrubei o lesado do Vidal, o entregador. O Vidal não entende nada mesmo; mas dessa vez foi Deus que o enviou. Peguei-a, aprumei e vupt. Cacete. Foda-se. Fui.

Não esperavam, certeza. Não sacaram arma nem nada. Acharam que não seria capaz. Otários. Aperrearam-se com o improvável. Avancei mais, sem freio, na banguela; e era descida. Do susto, soltaram o Jão. Prato cheio: matar três coelhos numa cajadada só. Encaixei direitinho. Foi garrafão de água e gente pra todo lado. Quatro caídos, agora, arquejando; e Jão meio de banda, jogado. Enquanto carregava Jão na garupa, que dava sinais de vida, os cachorros terminaram o serviço com os puliça. Os bichos têm faro apurado, foram em cima e, de supetão, picotaram as fardas em múltiplas dentadas, com lasquinhas de carne e de sangue salpicando; trucidaram os coturnos e, pasmem na inteligência, arrancaram os cintos com as armas e jogaram longe, fora do alcance dos samangos – não caberiam, jamais, distintivos e aportes naqueles corpos tortos, imundos.

Jão se recuperou e voltou à rua. A rua foi seu lar por longos anos. A rua guardou a sua redenção – e ele, incauto, não sabia a aura de amor que o envolvia. Por acaso, saiu no noticiário a covardia arranjada contra Jão, através de um vídeo feito por um morador, e, logo, ganhou uma ruma de mantimentos, roupas, até pros bichinhos; e, vê só, recebeu, também, um abrigo na casa da caridosa senhora Aglais.

Foi, cada dia melhor, coberto pelo desvelo do povo; uma espécie de recompensa pelos anos dedicados à comunidade de Santa Mônica. Passou, então, depois de muito custo, a cuidar de si. Hoje, tem nome, tem lar; sabe, seguro, onde escorar a cabeça cansada, no fim do dia. Polícia direita transita nas áreas. Nós trata bem, se tratar bem o cidadão. Miliciano e fascista safado não circula, não. A lei é o povo, meu sinhô.

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Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem crônicas e contos publicados nas Revistas Berro, InComunidade, Lavoura, LiteraturaBr, Literatura & Fechadura, Mirada, Pixé, Ruído Manifesto, São Paulo Review e Vício Velho. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.