É preciso ser um verme para admirar outro verme


Por Taciana Oliveira__

Leni Riefenstal


A cineasta e fotógrafa alemã, Leni Riefenstal, defendia suas produções cinematográficas para o Terceiro Reich como meros exercícios estéticos e belas narrativas visuais. Durante décadas tentou se justificar na lógica frágil de um perfil de artista apolítica e autônoma. Seus documentários para o partido nazista, no seu ponto de vista, eram filmes que não tinham nenhum compromisso ideológico. A sua atuação durante esse período rendeu trabalhos como: Der Sieg des Glaubens (A vitória da fé, 1933), Triumph des Willens (O Triunfo da Vontade, 1934), e Olympia (1936). Ao fim da Segunda Guerra, Leni foi julgada, mas não condenada. Um tribunal a considerou apenas como simpatizante do nazismo. 

A escritora e ativista americana Susan Sontag não concordava com isso, e em 1974, no seu ensaio "Fascinante Fascismo” escreveu: "A atual desnazificação e defesa de Riefenstahl como sacerdotisa da beleza — como diretora de cinema e, agora, como fotógrafa — não é muito alvissareira para a perspicácia dos peritos em detectar os anseios fascistas em nosso meio (...). Em algum lugar, é claro, todos sabem que algo mais do que a beleza está em jogo numa arte como a de Riefenstahl".

Freud, no seu ensaio “Psicologia das Massas”, de 1921, publicado na época que o sentimento nazista e fascista fomentava as cabeças de uma Europa frágil e dizimada pela Primeira Guerra, reflete sobre a importância dos aspectos sociais na consciência do indivíduo. Para Freud o contexto em que o indivíduo vive influenciará seus desejos e sua atuação no mundo. Adorno, em seu artigo "A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista", publicado em 1951, analisa a antecipação de Freud à compreensão sobre a ascensão de Hitler: “O ganho narcisista fornecido pela propaganda fascista é óbvio. Ela sugere continuamente, e às vezes de maneiras bastante maliciosas, que o seguidor, simplesmente por pertencer ao grupo, é superior, melhor e mais puro que aqueles que estão excluídos. Ao mesmo tempo, qualquer tipo de crítica ou autoconsciência é ressentida como uma perda narcisista e provoca fúria."

Faço aqui um paralelo da conduta da mulher e artista Leni com o que acontece em nossos dias, e a comparo aos 42,1 milhões de votos nulos e brancos da última eleição, com a ascensão olavo-fascista que assola Pindorama, a omissão à manipulação da mídia, cúmplice e passiva do golpe branco, que destruiu a futura promessa civilizatória de um país, e pergunto: como não enlouquecer com a hipocrisia, a intolerância indigesta de toda essa gente que elegeu um genocida para comandar o Brasil? Como preservar a sanidade em meio a uma pandemia que escancara as vísceras da necropolítica?

A imprensa brasileira, que se comporta como Leni Riefenstahl, finge não ter nada a ver com isso. Pede constantemente autocrítica do principal partido de esquerda do país, mas é incapaz de assumir o seu papel na construção do discurso da extrema direita bolsonarista e na desconstrução sistemática da democracia brasileira.
Para os artistas que deram respaldo a esse projeto excludente e fascista resta como recompensa a caricatura senil de uma ex-atriz global, que fora da sua racionalidade elege as perguntas que pode responder e protege descaradamente a milícia que destrói sorridente qualquer tipo de valorização ou fomento à classe artística. Dar corda ao mecanismo do ódio é semear a oferta de nióbio e cloroquina para um roteiro de pós-verdades cientificas. Nunca na história desse país se descortinou tanta estupidez e benevolência à corrupção. O mito é narciso e expõe na violência dos seus discursos a voz da corja que o venera. É preciso ser um verme para admirar outro verme.

Leni Riefenstal como correspondente de guerra em choque com a morte de 22 judeus na Polônia

A história nos conta que Leni Riefenstal, em determinado momento, se assustou com o desaparecimento de alguns dos seus amigos judeus. Mas já era tarde, e como a estética e a arte sempre foi mais importante, ela prosseguiu firme e forte dirigindo seus filmes. A omissão padece de um cinismo doentio, que nos acompanha há anos e nos faz reprisar os velhos jargões da política brasileira em nossos relacionamentos afetivos e sociais. Clamamos por justiça, mas nos apoiamos em verdades recheadas de premissas inúteis de um judiciário partidário e omisso. Amigos, a revolução não se resume a uma publicação no Instagram. Acordem!

No documentário “Leni Riefenstahl: a Deusa Imperfeita" (1995), de Ray Müller, a cineasta é confrontada diversas vezes pelo seu passado. Sim, é inegável sua competência artística na direção cinematográfica, com a utilização de planos extremamente bem calculados, e no  ritmo imposto na montagem documental de suas produções. Quando conheceu Hitler, fã de seus filmes, ele lhe disse: “Se um dia eu for governo, você fará filmes para mim”.
Leni tenta se eximir da culpa de apoio ao regime (não consegue) imprimindo um perfil de mulher alienada e sem consciência política. Afinal, ela era “apenas uma artista e não fazia ideia, que no seu país acontecia o genocídio nazista”. É verdade esse bilhete.

Assistam o filme e tirem suas conclusões.






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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.