A vida de M e de Tantxs | Adriano B. Espíndola Santos

 por Adriano B. Espíndola Santos__

 

Jr Korpa

Acordou às sete, já tarde para os compromissos matinais, terrivelmente assustado. Por isso, como se estivesse pronto para uma fuga, alinhavou-se na arrumação, metendo os pés pelas mangas. Não viu bem a cor da roupa que botara. Quem o conhecesse e o visse poderia supor que não havia nada de errado, haja vista a discórdia habitual com os tratos para um bom combinador. A camisa era vermelho sangue e a calça, a primeira à vista, estendida no varal, amassada, era de uma cor que lembrava o azul celeste. Os sapatos, os de sempre, verdadeiras botas militares, que, para os curiosos, alegava o gosto irresistível por objetos duradouros; e não importava de que estilo fossem.

O café, pronto na garrafa desde o dia anterior, tomou-o em goles graúdos, pois que não sentia qualquer ardor e desconforto que o impedissem. Estava amargo, levemente aquecido, mas, para não expurgar o único alimento que levaria à boca, lembrava-se da frase: “mais amarga é a vida”.

Portava-se como um sujeito distinto, adequado, irreprochável para os ditames sociais. Cumpria-os com uma mesura indizível. Se passasse pela porta de dona Genuína, uma velhinha que morava na esquina de sua casa e o conhecia desde menino, beijava-lhe as mãos e pedia sua bênção, pelo que, de pronto, era atendido: “Vá com Deus, meu filho! Nossa Senhora o acompanhe!”. Na verdade, Genuína queria compensar os quereres de mãe, que ele não tinha, falecida há poucos anos, deixando um vazio tremendo; e, para aplacar as desventuras, Genuína aprontava suas roupas, quando podia, e lhe sobrevinha alguma saúde – e se desculpava se não o pudesse fazer.

Logo mais, no trajeto irretocável, na porta da mercearia, ele, o menino de ouro, acenava vigorosamente para o senhor Anastácio, o dono da venda, que, por grandes ocupações, às vezes se queixava de sua insistência – mas não dizia, só respondia com rezingas e murmúrios de rabugem. M não ligava, ria até, achava o comportamento de Anastácio um tanto exagerado e natural para a sua idade e para os padrões que levava, de homem pregado a uma vida circunspecta ao trabalho. Nunca vira Anastácio em outros trajes que não camisa e calça branca, um avental e um chapeuzinho de padeiro. Não ousaria perguntar se pagava promessa; se não teria como variar o vestuário, para alegrar o ambiente; só pensava.

E, por último, antes de pegar a condução, que o levaria ao extremo da cidade, dava adeus à senhora Raimunda Gonçalves, mais conhecida como dona Gonçalina – porque, decerto, não gostava do nome Raimunda; contudo, não seria M a questionar a mudança de prenome, nem as razões para o esconder, já que achava até bonito, original para a época. Gonçalina, ao pé da porta, acompanhava o vai-e-vem de trabalhadores, atada ao crochê e a outros afazeres, como aguar as plantas. Fora, nos áureos tempos, amiga-irmã de sua mãe, colega de repartição, no Centro Educacional Dom Pedro II. Ainda guardava, não só nos traços, mas no porte, a altivez de uma senhora que fora diretora da maior escola da região, com punhos de aço. Nunca chegou a recriminar M por qualquer deslize, muito em razão de sua mãe e por ser um menino educado, de princípios; mas, na redondeza, era tida como carrasca, mal-amada e outros adjetivos e substantivos que M não queria se inteirar; achava-os injustos e precários, descorteses. Jamais compactuaria com tamanha aversão.

Gonçalina, ainda que não se importasse com a vida do senhor M, dava-lhe um bom dia vigoroso; e isso era o que importava a ele, para começar o dia, como se saísse de um batalhão. Ela o despertava, alertava o seu caminhar, para seguir firme e atento para o trabalho.

Portanto, como dito, era assim, rigorosamente: passava por Genuína, Anastácio e Gonçalina, para, enfim, seguir viagem. Nesse dia, com o tumulto interno, a desordem que o perturbara, perdeu o eixo e deixou de cumprimentar Genuína, logo na primeira parada. No ônibus, lembrou-se do ocorrido e se martirizou, com uma dor lancinante cortando o coração do começo ao fim. Afixado às regras e à ordem, tentou voltar, mas era tarde demais. Sabia que, se demorasse mais uns vinte minutos, estaria no olho da rua.

Mesmo no ônibus, notara uma grave moléstia, os olhares tortos, e outros de chacota, apontando para si. Um desses estudantes colegiais, com o escárnio entranhado da idade, gritou do fundo da condução: “Tem um palhaço no ônibus, gente, vamos rir em sua homenagem!”. Até o motorista, que era acostumado aos mais diversos tipos de gosto, se deleitou na galhofa e desandou a rir, sendo acompanhado pelo cobrador e pelas senhorinhas com assento especial para idosos. M não sabia onde se enfiar. Não intuía o motivo, e se perturbava mais. Aguentou, calado, por longas duas horas, sentado, como se estivesse colado e não pudesse se mover. Não olhava sequer para os lados. Soube que chegara ao destino porque era o fim da linha, e o motorista pediu que saíssem: “Deem espaço para o senhor extravagante passar”, se acabando de rir. Uma atração à parte. Todos julgavam que fizeram uma excelente viagem, menos M.

No caminho para o trabalho, teria de passar por uma praça, e aí pensou que ocorreria o mesmo infortúnio: que seria melhor contorná-la, para passar incólume pela cidade-reprovação. Assim o fez, e demorou mais do que o normal: se fazia o trajeto a pé em dez minutos, concretizou a saga em trinta. Chegou esbaforido ao trabalho, pedindo sinceras desculpas; sendo, no ato, como imaginado, severamente repreendido pelo chefe, que dizia não suportar a sua cara-lavada, fingida, de bom menino, quando esperava uma chance para aprontar uma boa, como essa que havia acabado de praticar. M se desculpou mais umas trinta vezes, reverenciando o chefe, como um típico japonês; como vira nos animes e nos filmes de que era aficionado. O chefe, para não encompridar a conversa, resolveu com um: “Tá, tá… se ajeite e pronto!”.

Não havia, no trabalho, nenhum amigo em especial. Alguém que lhe dava atenção era o Diógenes, um faz-tudo, de cargo inferior, que talvez o fizesse por mera bajulação. M não trocou palavra durante o dia. Na hora do almoço, Diógenes chamou-o no canto e disse que precisavam conversar. Ouvira rumores de que a firma não ia bem das pernas e que botariam uns seis para fora, e que o nome M estaria no meio. Pronto, desabou em prantos, sendo consolado, vagamente, por Diógenes: “Calma, calma, meu rapaz; são só boatos. Nada certo… Só disse para que não fosse pego de surpresa. Não sei se é verdade. Deixa isso para lá!”. M não cessou e voltou para o posto choroso, para não fazer alarde. Pensou em ir conversar com o chefe, alegar que isso do atraso não aconteceria mais; que fora um erro, um engano, e que ficasse certo de que seria o funcionário modelo, exemplar, de hoje em diante.

Levantou-se, fez que ia tomar água, na saleta que quedava ao lado do chefe, e não arranjou coragem. Pelo vidro, conseguia ver a agitação de um homem de negócios, com inúmeras ocupações; não teria tempo para ouvir as leais verdades do coração de M. De fato, o chefe estava em frangalhos, em todos os sentidos. Perdera uma franquia e cogitava diminuir os custos. Não estava certo de que M estaria no grosso que seria botado para fora. Apesar das esquisitices contumazes, M era responsável e não atrasava nos serviços. Estar mal trajado ou desarrumado alertava o chefe somente para a mudança nos padrões, e nisso incluía o uso obrigatório de farda.

Para complicar, Nelson, um dos mais antigos da empresa, um encarregado pessoal do chefe, deu de colar na mesa de M para rir, ao pé do ouvido, de seus trejeitos de “virgem aos quarenta”: “Vamos arranjar, logo, uma dessas aí para tirar o seu cabaço, rapaz. Não aguento mais ver essa sua cara azeda… Você nunca se lambuzou numa xereca?”. M queria se meter por debaixo da mesa, procurar um esconderijo permanente, no qual pudesse trabalhar em paz. Além de tudo, Nelson não deixava que se concentrasse, e quebrava as ordens dos compromissos para o dia – teria de entregar, antes das cinco da tarde, um relatório de vendas.

Diógenes, sentindo o peso que aglomerava o lugar, veio socorrer M. Chamou Nelson para tomar um café e, muito provavelmente, relataria o mesmo transtorno contado a M. Nelson, devagar, se afastou da mesa, olhando fixamente para M: “Olha o nosso compromisso! Olha, hein!”. Não tinham feito compromisso algum; mas M sentia, no seu íntimo, que deveria responder a essa demanda – mais uma dentre tantas.

Sem se concentrar, refletindo sobre o estado de Genuína, se estava bem; se teria tido um passamento; ainda assim, com os nervos em polvorosa, logrou concluir o relatório e entregou-o ao chefe faltando dez minutos para as cinco. “É isso. Espero que os dados estejam corretos, rapaz… Você… Você hoje está mais esquisito do que nunca! Vá!”.

Saiu da sala e foi direto ao banheiro, para desaguar uma infinidade de desgostos que o consumiam. Contou no relógio cinco minutos, nada mais que isso, porque poderiam tê-lo como enrolador, que usa de subterfúgios para não trabalhar. Voltou à mesa e esperou alguma demanda do chefe. Nada. Então, sem demora, bateu o ponto às dezoito horas. Precisava correr para pegar a condução, como fazia todos os dias. Confuso, errou o percurso que havia planejado: não queria passar pela praça povoada de adolescentes. No meio da praça, passando apressado, ainda ouviu os risos, e algum objeto o acertou nas costas. A dor o fez perder o fôlego e andou lentamente até a estação; foram longos quarenta e cinco minutos.

Pegou, como esperado, o ônibus lotado e teve de se enfiar pela porta traseira, comprimido por dois senhores avantajados, que precisavam de espaço para as suas barrigas proeminentes. Apertava-se absurdamente, o que fazia latejar as costas. No trajeto, tentou colocar os fones de ouvido e acompanhar a nova série sobre o Império Otomano. O interesse desmedido por história o fazia pensar se teria feito o curso correto; ao invés de contabilidade, deveria ter feito história. Já não tinha planos, nem saco, para encarar uma nova faculdade – e sofrer, certamente, os mesmos bullyings que suportara para terminar o citado curso.

Quando o ônibus parou na estação, foi cuspido para fora e caiu entre um vão, torcendo o pé direito. Mais uma dor para o acompanhar. Arrastou-se, qual um coxo, até a casa de Genuína. Focava nessa ideia, de saber como estava. Mas a agonia o subtraía, o colocava em outra dimensão. Parou no acostamento e chorou, atacado dos nervos. Uma senhora quis se prontificar a ajudá-lo, mas, vendo o tamanho do sujeito, ficou com medo e passou fingindo não dar atenção.

Meia hora mais, perto de completar nove da noite, M se levantou a custo e continuou o trajeto, agora obstinado. Parece que alguma força sobrenatural o carregava pelos ombros. Estava leve, regulado, como há muito não sentia.

Faltando uma quadra para chegar à casa de Genuína, ouviam-se lamentos, vozes entrecortadas, e se podia avistar gente apinhada na entrada de sua casa. M ficou desconcertado, atarantado, sem entender, procurando nos céus explicações.

Tentando furar a entrada, foi abruptamente parado por Ricardo, o filho de Genuína: “Não, espere! Só a família!”. “O que houve, Ricardo?”. “Como você não percebeu? Mamãe passou dessa para melhor!”. Mirou, por entre as frestas, a senhora deitada no caixão. Estava sendo velada, com carpideira e tudo a que teria direito.

M não conseguia dormir. O sentimento era de ter perdido novamente a mãe. Era a única pessoa ali que se preocupava com ele de verdade. Pensou em lançar-se, armando uma forca na sala, do lustre monumental. Pensou, por fim, que a vida era um trem com bilhete de partida; e que partiria, quando possível, as raízes que o atavam à desolação de uma exemplaridade torturante. Porém, não vislumbrava como.

***

Naquela noite, duas almas se fundiram e despacharam para o além. Quiçá, receberia algum perdão; com a graça de Deus misericordioso. Foi assim que se despediu no recado talhado na mesa de jantar.

 



Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir - sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.