Resenharia: Coroação Preta, de Celeste Estrela

 

por Iaranda Barbosa__






         Em meio a reminiscências que se alternam entre prosa e poesia surge Coroação Preta, de Celeste Estrela. A autora, que por si só já apresenta no nome poesia e realeza, nos brinda com uma obra que é uma verdeira aula de história, contada através de poemas e narrativas que descrevem a sua vida e o seu cotidiano pelas periferias do Rio de Janeiro. As mudanças urbanas, as problemáticas sociais, o racismo, o trabalho escravizado, os amores, as dores e muitas outras temáticas são abordadas em um deslocamento do centro às margens, ou melhor, do íntimo da artista para o exterior de um passado e de um presente que se intercruzam.

A ancestralidade é uma das primeiras referências que nos deparamos:.

 

Me lembro vagamente da minha vó. Era eu, ela e meu irmão. Fogão de lenha era coisa da época, que ela falzia com muito carinho nossa alimentação do dia-a-dia. [...] Era catadora de café, levava a gente para o trabalho. Dormíamos em cima do saco de café, eu e o meu irmão, até que um dia ela se foi.

 

Se vagas são as lembranças da avó, vívidas e pulsantes são as memórias referentes às dificuldades tanto suas como das comunidades onde Celeste Estrela morou. Os vizinhos, as amizades, os sonhos, os lugares e, sobretudo, as pessoas deixaram saudade devido a uma ausência e a um vazio que parecem não ter perspectiva de serem preenchidos.

         Com o prefácio de Conceição Evaristo, Coroação Preta traz ao longo de suas páginas diversas fotografias da autora, apresentada sob vários ângulos. Tal recurso é um fator bastante significativo e contribui para as chaves de leitura, pois, em muitos momentos, personagens trazidos por Celeste Estrela parecem ser um reflexo dela mesma:

 

O quaze sorrizo de D. Filomena

 

Um pequeno barraco fumegando

Um fogão de lenha esquentando

Uma parede de tauba separava o meu barraco do dela

Favela sercada pelo cemiterio do Caju

         e pela arsenal de guerra

 

         A variação linguística de Celeste Estrela é preservada no livro, provocando uma aproximação ainda maior da realidade dessa escritora que, apenas aos 79 anos, viu impresso em livro toda uma vida de percalços e vitórias. Transitamos entre o subjetivo e o empírico em meio a um apanhado histórico e geográfico que é reiterado de maneira que se confunde com os episódios vividos pela autora:

 

24 de agosto

anos cinquenta

 

[...]

Vinte quatro de agosto, tudo mudou não só pra

Mim, a tragédia

Radio anunciando, foi um terror

Getulio Varga se suicidou. Com tiro no coração

Nada entendia mais sabia quem era ele

O prezidente do Brasil não sei se era ruim

Ou se era bom.

Senti o crima, tenso, o dia inteiro

Escureseu a patroa gritou

O leite do bebê acabou.

[...]

 

A maneira simples de narrar chega ao leitor de modo muito pungente. Celeste Estrela taz em sua Coroação Preta textos que emocionam e incomodam por nos fazerem refletir que ainda hoje estruturas racistas e mazelas sociais possuem raízes evidentes e ao mesmo tempo bastante profundas. A obra em tela é mais um grito de resistência advindo de uma mulher empoderada e resiliente.


 




Celeste Estrela: Sou mulher, preta, favelada, poeta, atriz, compositora e rapper e integrante da velha guarda da Escola de Samba Unido de Manguinhos. Tenho 79 anos, mineira, fui trazida para o Rio de Janeiro ainda criança, cheguei primeiramente na favela do Caju, sendo uma das famílias removidas para a obra da Ponte Rio-Niterói. Cresci na favela de Manguinhos, onde resisto e resido há mais de 40 anos. Trabalhei em casas de família pra criar minhas filhas e netos, como cobradora de ônibus na antiga CTC e publiquei minha primeira poesia em 1986, na antologia Nova Poesia Brasileira.

 



Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.