Causa e efeito, Adriano B. Espíndola Santos

 

por Adriano B. Espíndola Santos__

 

Jr. Korpa


Alberto me pegava pelo braço, cada vez que eu fazia um “malfeito”; e um terrível peso caía sobre mim… Sinceramente, eu não deveria me surpreender tanto com a maldade humana; já suportei o pão que o diabo amassou. Mas a verdade é que não me acostumo com tragédias. Alguma vez, que não me lembro bem, vi na televisão que o homem tem a capacidade de se adaptar às dificuldades. Não sei como chegaram a essa conclusão. No Oriente Médio, por exemplo, é assim? Não. Milhões fugiram das guerras, que duram uma eternidade. É bomba por cima de bomba. Até homem-bomba tem… Parece que o povo lá gosta de brigar. Uns desses fugitivos estão aqui. E aí volto para Alberto… Como um homem, escorraçado de sua terra, tinha a frieza de se agarrar, ainda, à arma do medo. É como se ele fosse onipresente; eu resvalava em seu olhar em qualquer canto do apartamento, que, diga-se de passagem, possuía uns cinquenta metros quadrados. Se ia à cozinha, para pegar um reles pão, ou comer um biscoito, vinha a nuvem da dúvida: “Será que estou passando da linha? Será que Alberto me repreenderá por um certo consumo excessivo?”. Nem comer mais podia em paz. Numa ocasião, quando ele voltou do trabalho para tomar banho e almoçar, me pegou comendo uma banana amaçada com leite. Sim, uma simples banana pisada no leite. E, nesse dia, por uma coincidência desgraçada, fazia a minha primeira refeição; o estômago estava vazio desde a hora que ele saiu; não tive forças para acordar, me levantar e arrumar a casa e coisas afins. Alberto me olhou com um ódio visceral, e vomitou: “Você come, come, sem parar… Assim acaba o dinheiro!”. Ah, um detalhe: chamava o cabra de Alberto, mas seu nome de batismo é um mistério para mim. Quando cheguei, já o tratavam como Alberto. É possível que os sons de seu nome original tenham o aspecto de “Alberto”. Não me importava… A vida apronta: fui parar naquele apartamento por azar, como diarista; estava há meses sem arrumar serviço. Há exatos dois anos vinha, dia sim, dia não, arrumar e preparar a comida, que teria de ser fresca, do dia. Nunca vi um patrão mais exigente com a alimentação; nem tanto com a arrumação, que ia muito ao meu gosto, colocando os objetos em lugares apagados; até plantinhas comprei – e ele não notava a diferença. Aí, fui ficando, ficando… Passei a trabalhar todos os dias, e ele demonstrando afeto e querer bem a minha pessoa. Nunca tive carteira assinada. Ele me pediu a carteira para assinar e não me devolveu. Estava, desde 25 de março de 2020, confinada naquele maldito apartamento. No grosso da pandemia, não podia sair de casa, a não ser para comprar os mantimentos no supermercado escasso, a uma rua de casa; e ele sempre me recomendava: “Não sair longe, hãn?”, com o rosto franzido de ódio. No começo, sabendo que sou do Norte, e que não tenho parentes nessa cidade, quis me agradar; levou-me até para jantar, e eu, ingênua, caí na malícia do sujeito. Disse que eu era bonita, coisa e tal; que queria uma mulher “cuidada” como eu. Acho que a intenção era falar mulher zelosa. Deu-me uns negócios que dizia serem joias: “É tudo que mulher bonita precisa”. Não, precisava de muitos mais: amor, afeto, carinho; que chegasse no bem-bom, no bem-amor… O caldo foi azedando, depois de algumas semanas que “pediu” para eu ficar. O homem mudou da água para o vinho. Determinava a comida pronta e a casa limpa. “Mulher é pra fazer isso. Não entende! Não entende!”. E cada vez que eu tentava me explicar, que aqui no Brasil não é assim, ou pelo menos não deve ser assim, ele vinha com quatro pedras na mão, literalmente. Atirava alguns objetos de louça e vidro no chão, inclusive pratos, copos… A raiva de ser contrariado era descontada primeiro nessas coisas. Pensei que mais dia, menos dia, me quebraria ao meio. Essa história de mulher, como se eu fosse sua mulher, ou sua propriedade, se dava assim: eu dormia no quarto dos fundos, o de empregada – que mais parecia uma despensa –, e ele no quarto de casal. Houve o dia em que ele, alterado da bebida, bateu à porta do meu cubículo; o relógio marcava duas da manhã. “Abra, habib minha!”. Isso era ainda na primeira semana de prisão. Eu, então, abri, pensando que poderia ser pior se deixasse a porta trancada. Ele entrou, alisou meus cabelos, me puxou contra o peito e meteu a mão nas minhas pernas. “Alberto quer minha mulher”. Decidi empurrá-lo com toda a minha força; ele se espatifou no chão. Demorou a se levantar. Fui obrigada a carregá-lo; ele estava mais mole do que vara verde. Levei aquele monumento, gordo, peludo, para o quarto. No outro dia, ele saiu de casa às 10h; só aí tive coragem de ultrapassar a barreira da minha cela. Comi o que tinha na geladeira – muito, para descontar; desse o que desse, eu não estava nem aí. Mexi nas gavetas e em todos os buracos do apartamento, à procura da chave; precisava sair correndo, pedir ajuda. A sorte é que o homem, ainda bêbado, deixou a porta do quarto aberta. Encontrei a bendita; estava embaixo da cama, possivelmente ele havia perdido na confusão. Saí correndo, como o diabo foge da cruz. Na portaria, o Abelardo me perguntou o que tinha, que não me via mais, e eu contei logo toda a história para ele. No ato, ele ligou para o Dr. Cláudio Parente, um delegado de primeira, que me levou para a delegacia, para prestar queixa. Eu sei que demorou foi muito até me liberarem. Contei tintim por tintim. Eu queria que aquele homem ruim parasse na cadeia, para aprender que o dinheiro dele não compra dignidade. Dito e feito, arrastaram o rabugento do armazém, que dizem até ser clandestino; que o homem trabalhava com coisas erradas; e aí foi ele quem passou um bom tempo na prisão, para aprender a tratar de gente. Voltei para a minha antiga patroa, que me acolheu depois de o meu caso sair no noticiário. Agora, sou tratada feito princesa, como num conto de fadas. Ao menos essa história teve um final feliz.

 






Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir - sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.