por Taciana Oliveira__
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Fotografias: @morgananarjara |
Entrevistei Quiercles Santana, um desbravador dos limites cênicos, parceiro de inúmeros projetos independentes, uma figura sempre atenta as necessidades da classe artística, uma das vozes mais conscientes e potentes da cena teatral pernambucana.
No seu mais novo projeto, Kalash, ele mergulha na direção e construção da dramaturgia coletiva e nos convida para respirar, refletir e resistir a insanidade que nos circunda: Eu não monto peças, meu senhor. Quem monta peças é torneiro-mecânico. Sou somente um operário do palco, nada mais. Meu serviço é criar com o elenco, com os técnicos, com o público, estados afetivos de reflexão; atmosferas de mundos dinâmicos e multifacetados, ao mesmo tempo iguais e diferentes do mundo real que habitamos.
Tenho me disposto a estar atento ao que acontece ao meu redor, sim. Tudo, tudo, tudo me interessa. Sei que de qualquer tema/ circunstância pode brotar um espetáculo novo, uma cena, uma dança, uma imagem, um som.
Dentro e fora das salas de ensaios, busco me colocar em xeque, não me acomodando no que já sei fazer, mas usando o pouco que aprendi para cavar o que nem sabia existir. Coisas novas e surpreendentes interessam. Trabalhar interessa. E mais ainda com gente comprometida com os sonhos, com os traumas, com os exorcismos mais íntimos, com a coragem de criar.
Cada novo trabalho é para mim uma oportunidade ímpar de ampliar conhecimento, de aprender um pouco mais, de pensar de outro modo, de não seguir no Efeito Manada, de entrar em relação com os viventes e com os mortos.
Se amo minha profissão? Sim, senhor, mais que tudo. Amo esse ofício de frutos efêmeros. Amo essa lida diária, essa ralação que não sei que raios de prazer me dá. E peço aos céus que minha profissão me alimente e me pague as contas, o que nem sempre tem sido possível, como no atual presente que nos devora.
Isso tudo pra dizer que Kalash é um
desafio constante. Espero que estejamos à altura. Espero que não capitulemos.
(É que sem grana é muito mais barra.) Que sejamos resilientes. Estamos conseguindo. FÉ!
1 - Em
Kalash qualquer semelhança com nosso momento atual não é mera coincidência?
Não, não é mera coincidência. É exato das
brutais dificuldades de se viver os dias de hoje que nasce KALASH: Ensaio Sobre a Extinção do Outro. Mas quem é esse outro,
essa outra? É aquele ou aquela com quem não nos identificamos, com quem não
sentimos empatia, por quem muitas vezes chegamos até a nutrir certo ódio. E por
que precisam ser extintos, esses outros seres diferentes, singulares no vestir,
no andar, no pensar? Por que aniquilar os que divergem? Os que não creem no
mesmo Deus que nós? Os que não veem o mundo pelas nossas lentes?
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Quiercles Santana |
2 - Fala um
pouco do processo de criação e produção do texto do espetáculo.
Eu quase não tenho mais montado espetáculos
com textos dramáticos já prontos, escritos previamente por outra pessoa em um
gabinete distante no tempo e espaço. E nem apostado em narrativas convencionais
que têm começo, meio e fim, contando a história de personagens. O teatro que
tem me interessado é o que se move a partir da inquietação do elenco, dos
nossos fantasmas, das nossas dificuldades em entender a realidade.
Kalash é um “ensaio” no sentido dado por Theodor
Adorno a essa palavra: um gênero discursivo, argumentativo e expositivo que apresenta tentativas de
refletir crítica e subjetivamente sobre um determinado tema, em que se assume
um ponto de vista e se busca defendê-lo em uma estrutura lógica, sem querer
chegar a uma conclusão categórica e imutável. Ou seja, a ideia não é
fechar uma resposta, mas abrir perguntas, provocar o público a refletir junto
com a gente.
Por ora, não temos ainda um texto pronto. O
texto vai sendo construído a partir de recortes de nossas leituras, dos filmes
e séries que vamos descobrindo, dos documentos que nos caem nas mãos e do
trabalho em sala de ensaios, imprescindível para investigar as contradições, as
possibilidades e formas que o tema nos abre no jogo da cena. É o que se costuma
chamar de trabalho em progresso (work in
progress). Os ensaios práticos alimentam o estudo teórico, que realimentam
a prática dos ensaios, que vai alterando o texto escrito, entende? O texto
final vai ficar pronto quase concomitantemente à estreia do espetáculo, no
nosso caso prevista para janeiro de 2022.
3 - Quando e como nasce Kalash?
Em 2019, primeiro ano do des-Governo Bolsonaro
as portas se fecharam em definitivo para os artistas, em especial os ligados às
artes presenciais (ou Artes Cênicas, se preferir: Circo, Teatro, Dança e
Ópera). O descalabro econômico e social, a barbárie, o ódio, as reais
dificuldades da Esquerda em se organizar enquanto oposição, a letargia do Poder
Judiciário, o asco que é boa parte da Câmara dos Deputados e da Imprensa: tudo
isso virou uma espécie de Coquetel Molotov lançado contra a Democracia, contra
a Constituição, contra o Estado de Direito, contra a nossa crença nas
instituições.
Lembrei agora de muitos amigos e amigas que
choraram (e ainda choram) a falta de oportunidade, a fé em dias melhores, uma
luz mínima que seja para sairmos do abismo em que fomos metidos. Uma
desmotivação geral. É pouco? Aí, para completar a desgraceira, chega a Covid-19
e com ela o medo, o isolamento social, a apatia, o número crescente de mortos.
Putz! Isso sem falar da violência crescente da PM, a escalada dos milicianos e
dos narcopentecostais.
Então, em março de 2020, pouco antes da
pandemia se instaurar, Bruna Luiza
Barros, Luciana Lemos, Alexandre
Sampaio (mais tarde substituído no processo de criação por Tatto Medinni) e eu resolvemos nos debruçar sobre um fenômeno que mina qualquer
regime democrático: a dificuldade que se tem de ouvir vozes discordantes, mesmo
que não sejam necessariamente nossas inimigas. Se você não concorda 100%
comigo, já não quero lhe ouvir. Se eu não bato continência e não digo amém para
a sua cartilha, que eu queime no fogo do inferno. Sem dialogar fica difícil
criar outro mundo possível. Aonde isso vai nos levar, essa falta de diálogo? De
repente, o efeito manada, que sempre existiu, virou uma febre e onde não se tem
um pastor, um guru, um coach, se elege um ou uma a quem se deve seguir
cegamente. Claro que acredito na luta pelos direitos. Mas se todo mundo andar
por aí em grupo, com o dedo em riste, sem se desarmar, como se vai construir o
que quer que seja de bom para todo mundo? Muito romântico, né? Eu sei. Mas a
banalização da morte, da violência, do linchamento, do cancelamento, virou algo
sobre o que pensar.
Se só se quer o lugar de fala, onde fica o de
escuta? Se todo mundo diz sua verdade, quem ouve a verdade alheia? Se só você
tem a última palavra, a lacração, como fica a verdade do outro? Ela não vale?
Só a sua? Só o seu Deus é bonito? Isso vai acabar virando uma Babel, não vai? E
assim nessa algaravia não fica fácil a gente perder o jogo para os
totalitaristas de plantão?
Todas essas questões levaram à criação do Coletivo Resiste!, que busca oferecer Kalash como uma experiência
metateatral, política, épica, lírica, com uma pegada documentarista, cujo alvo
é provocar a reflexão das pessoas sobre essas coisas, não só no Brasil e não
apenas nos dias de hoje.
E aqui quero deixar registrada a parceria com profissionais de reconhecida competência técnica e artística, que embarcaram com a gente sem grana, por acreditarem também em nossa loucura: Carla Navarro (produção executiva), Natalie Revorêdo (designer de luz), Kleber Santana (direção musical), Flávio Freitas (cenotecnia) e Analice Croccia (que foi minha parceira de direção no Alguém Pra Fugir Comigo, do Resta 1 Coletivo de Teatro, e em Kalash faz a direção de arte). Queria registrar nossa gratidão ao Centro Apolo-Hermilo e sua equipe incrível, que gentilmente tem nos acolhido nas suas dependências, onde fazemos os ensaios presenciais, seguindo os protocolos sanitários. Sem essas parcerias nada seria possível.
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Fotografias: @morgananarjara |
4 - Para
Antonin Artaud o teatro deveria ser como uma peste, ter a força de uma
epidemia. Em tempos de cloroquina, Fake News e naturalização da violência o
artista brasileiro ainda consegue reverberar resistência? Fazer teatro no
Brasil ainda é possível?
Ah, que legal você ter trazido Artaud para
essa conversa! Gosto muito disso, por que quem foi mais resistente, mais
resiliente, mais estoico que Artaud, meu Deus? Quem? Acho uma referência
maravilhosa! Sempre me faz lembrar do Zé Celso Martinez Correia, o senhor
absoluto do Teatro Oficina Uzyna Uzona,
que em defesa da sede do seu grupo teatral, em São Paulo, enfrenta bravamente
há décadas o Grupo Silvio Santos. É a arte contra a barbárie mesmo. Uma coisa
hedionda do capitalismo contra um artista que merece respeito por parte de todo
mundo, exatamente porque, apesar de tudo, ao longo dos anos, resiste.
Então, sim, é possível fazer teatro em tempos
de Bolsonaro. Deve-se fazer teatro, dançar, cuspir fogo, em tempos de pandemia,
de recrudescimento dos militares ao centro do poder. Não é fácil, ainda mais
sem dinheiro, sem nenhuma certeza sobre o presente ou sobre o futuro. Mas é a
forma de se enfrentar o medo, a ameaça, o sem-sentido desses tempos
desgraçados. Sem perder a ternura, lógico. Aliás, buscando a delicadeza, formas
de abraçarmos causas justas.
5 - Diante
do cenário de perseguição a classe artística brasileira, como você avalia o
apoio de alguns artistas ao governo Bolsonaro?
Burrice. Idiotia. Alienação. Para mim é a
prova cabal de que Arte pode te tornar uma pessoa melhor, mas não
necessariamente. Você pode fazer Arte, consumir Arte, ouvir Wagner,
montar Calderón de la Barca, ler Quintana, amar Van Gogh e
ainda assim estar apartado do mundo, desinteressado, indiferente à dor do
outro. Arte exige mais que consumo. É um convite a que saiamos de nós em
direção às outras pessoas, aos outros seres; pede simpatia, empatia, estesia;
demanda criar relações, sentir, experienciar a existência de outra maneira. Ou
seja, tem uma parte da experiência que é você que tem de fazer mover. Você quem
tem de se esforçar. Se você não está disposta a se desapegar um pouco de si,
não vai muito longe. Pode ouvir Bach e ainda assim sair esquartejando
crianças por aí. Não há garantias. Há convocação a se tornar uma pessoa melhor.
Depende também de você.
6 - Kalash é um espetáculo produzido a partir
de um financiamento coletivo. De que forma as pessoas podem contribuir para a
sua realização?
As pessoas interessadas em nos ajudar a botar
para frente esse trabalho, podem fazer um PIX
(Chave: CPF 720.340.414-53/QUIERCLES SANTANA) ou transferência bancária (BANCO DO BRASIL S.A./ Ag 3613-7 Conta
Corrente 14.135-6). A campanha vai rolar até início de outubro, mas quem
quiser pode mandar PIX mesmo depois disso porque a gente só estreia em janeiro,
como eu disse. E a grana é para pagar cenário e figurino. Nós não estamos nos
pagando. E tem muita coisa ainda para construir. Então todo apoio é bem-vindo.
7 - Qual é
a essência do texto de Kalash?
A luta contra a intolerância (especialmente a
religiosa) e o autoritarismo.
8 - Você
viveu o exercício de fazer teatro em plena pandemia agregando o suporte
audiovisual. Como você descreve essa experiência?
Difícil, mas enriquecedora. O meu maior medo
enquanto artista e pesquisador é estagnar, é ter certezas indubitáveis, é me
agarrar a dogmas e cristalizar para sempre numa forma única de fazer e pensar;
e assim ficar para trás, deixar de aprender com a ocasião, como dizem os
orientais quando falam do Wu Wei. E eu não quero perder a oportunidade de ser
um aprendiz. Não mestre. Não me interessa ser mentor de quem quer que seja, não
tenho muita coisa a professar. Esse lugar de guia espiritual, de alguém que
sabe a direção a ser seguida, não é meu. Sou um perdido. Sem bússola certa. A
aventura é minha deusa.
E foi assim que embarquei na produção de
conteúdo online. Devo isso à Casa
Maravilhas (leia-se Márcia Cruz),
que me convidou a participar de um projeto muito especial e eu fui. Fui
receoso, devagar, encafifado, mas fui. Paulo
de Pontes mais os poemas inflamáveis de Alexsandro Souto Maior, como poderia dar errado um projeto desses,
com um ator e um poeta de primeira linha? Foi maravilhoso! Aí tomei um certo
gosto pela coisa.
O impulso vital de criar heterotopias junto com outras pessoas, de não me deixar abater, de dar as mãos, mesmo que de forma online, foi sine qua non. Ainda prefiro a presença física das pessoas, é verdade. Sonho com o retorno (será possível?) do público na plateia, ao vivo, fisicamente presente. Mas não vou dizer que a experiência audiovisual foi algo de que não gostei. Não vou mentir. Sou louco por cinema, você sabe. Mas meu coração é ainda o encontro face a face com o público, a experiência relacional com as outras pessoas no mesmo espaço-tempo, dividindo os risos, as lágrimas, refletindo in loco, lado a lado, criando novas e inusitadas conexões com o mundo, com a existência, enfim.
Taciana Oliveira é mãe de JP, comunicóloga, cineasta, torcedora
do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e
literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra
quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.