Niketche: Uma história de poligamia, de Paulina Chiziane

 

por Iaranda Barbosa__

 



Uma dança tradicional do norte de Moçambique é a referência escolhida por Paulina Chiziane para construir Niketche: uma história de poligamia. O livro nos embala e nos faz percorrer o território moçambicano através de uma história na qual as mulheres não apenas estão em primeiro plano, pois a voz narrativa é feminina e homodiegética, mas também são a maioria das personagens. Os movimentos iniciam a partir do momento em que nos deparamos com Rami, uma mulher que descobre estar sendo traída pelo marido e, ao sair desesperada para enfrentar uma amante, se depara com mais 3 rivais:

 

O coração do meu Tony é uma constelação de cinco pontos. Um pentágono. Eu, Rami, sou a primeira-dama, a rainha-mãe. Depois vem a Julieta, a enganada, ocupando o posto de segunda-dama. Segue-se a Luísa, a desejada, no lugar de terceira-dama. A Saly, a apetecida, é a quarta. Finalmente a Mauá Sualé, a amada, a caçulinha, recém-adquirida. O nosso lar é um polígono de seis pontos. É polígamo. Um hexágono amoroso.

 

Cada uma das personagens pertence a uma etnia moçambicana (macua, bantu, sena, ronga, maconde, chagana, nhanja) e ao longo dos diálogos nos revelam costumes, tradições, comportamentos e hábitos. De igual maneira, o desenrolar da trama traz à luz motivos e propósitos pelos quais as mulheres fazem tatuagens, alongamentos genitais e participam dos rituais de iniciação, ao mesmo tempo em que a poligamia se revela de diversas maneiras e com inúmeros propósitos tanto para o homem quanto para a mulher. Contudo a situação enfrentada por Rami desencadeia atitudes de empoderamento, emancipação e independência para ela e as amantes de Tony.

Ademais, inúmeras são as reflexões exercidas pela protagonista. Elas transitam entre se considerar culpada pela traição, enxergar as outras mulheres enquanto inimigas e reconhecer a situação na qual se encontra como fruto de uma sociedade patriarcal, misógina e opressora. A divisão sexual do trabalho, a valorização do homem e o menosprezo pela mulher constroem um ambiente no qual a figura masculina possui inúmeros privilégios e a feminina está relegada à obediência, à submissão e ao casamento:

 

Quando servirem galinha, não se esqueçam das regras. Aos homens se servem os melhores nacos: as coxas, o peito, a moela. Quando servirem carne de vaca, são para ele os bifes, os ossos gordos com tutano.

Devem servir o vosso marido de joelhos, como a lei manda. Nunca servi-lo na panela, mas sempre em pratos. Ele não pode tocar na loiça nem entrar na cozinha.

[...]

É preciso investir nele, tanto no amor como na comida. O seu prato deve ser o mais cheio e o mais completo, para ganhar mais forças e produzir filhos de boa saúde, pois sem ele a família não existe.

 

Críticas e denúncias ao colonialismo e ao africanismo também se fazem presentes através de uma linguagem rica em ironia, humor, sarcasmo e jogos verbais que proporcionam certa leveza a temas tão pesados e sérios:

 

Persegui o rastro do meu homem, o que foi fácil, porque em cada passo ele caga um filho.

 

Niketche é uma narrativa que nos faz enxergar muitas questões sob novas óticas e nos faz refletir sobre o cuidado para não condenarmos o outro, pois também somos o outro. Logo, inúmeros comportamentos exercidos pelas personagens são comuns a diversas mulheres em todas as partes do mundo: ir em busca da amante a fim de tirar satisfações com ela; defender o marido e o casamento a todo custo; sentir-se culpada e olhar-se no espelho, procurando defeitos em si mesma para justificar a traição:

 

Vou ao espelho tentar descobrir o que há de errado em mim. Vejo olheiras negras no meu rosto, meu Deus, grandes olheiras! [...] Olho bem para a minha imagem. Com esta máscara de tristeza, pareço um fantasma, essa aí não sou eu. [...]

 

Em contrapartida, olhar-se no espelho faz com que a personagem tenha consciência de que a autopunição também é um reflexo de uma sociedade que condena a mulher por todos os males, independente de seu comportamento ou de suas atitudes:

 

Não tenho ilusões. Quer seja esposa ou amante, a mulher é uma camisa que o homem usa e despe. É um lenço de papel, que se rasga e não se emenda. É sapato que descola e acaba no lixo.

 

 

A mulher enquanto ser, ou melhor, objeto descartável possui, para a protagonista, origens profundas e antigas, pautadas inclusive na religião. Isto é, seja qual for a direção, a figura feminina está condenada e sem direito à defesa:

 

Até na Bíblia a mulher não presta. Os santos, nas suas pregações antigas, dizem que a mulher nada vale, a mulher é um animal nutridor da maldade, fonte de todas as discussões, querelas e injustiças. É verdade. Se podemos ser trocadas, vendidas, torturadas, mortas, escravizadas, encurraladas em haréns como gado, é porque não fazemos falta nenhuma.

Mas se não fazemos falta nenhuma, por que é que Deus nos colocou no mundo? E esse Deus, se existe, por que nos deixa sofrer assim? O pior de tudo é que Deus parece não ter mulher nenhuma. Se ele fosse casado, a deusa – sua esposa – intercederia por nós. Através dela pediríamos a bênção de uma vida de harmonia. Mas a deusa deve existir, penso. Deve ser tão invisível como todas nós. O seu espaço é, de certeza, a cozinha celestial.

 

            Chiziane constrói uma narrativa que se movimenta sinuosamente e resvala em um corpo social rígido, estruturado em normas de conduta há tempos definidas por aqueles que desejam se manter no poder e relegar à mulher a condição de vulnerabilidade. Os caminhos pedregosos pelos quais somos levados a percorrer ao longo das linhas de Niketche exigem pés de bailarina. Ou seja, delicados e graciosos para quem os enxerga de longe, porém calejados e deformados para quem é obrigada a dançar conforme a música.



 

 



Paulina Chiziane
cresceu nos subúrbios da cidade de Maputo, anteriormente chamada Lourenço Marques. Vive e trabalha na Zambézia. O seu romance Niketche: Uma História de Poligamia ganhou o Prémio José Craveirinha em 2003.

 





Iaranda Barbosa
, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. A referida novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária