por Germana Accioly__
Vou
começar pelas ancas. Aquelas fartas, curvas, fora do padrão. As que abrigaram
os rebentos. As mesmas, redutos da paixão. Caverna ensolarada que guarda
desejos. Sou uma mulher de um metro e meio e quase um metro de ancas.
Afino
para cima. O busto não representa tanto. Tenho a alegria de chegar aos 50 e
gostar de mim. Lembrar que estes peitos alimentaram vidas, último fio de elo
físico com as crias. Estão aqui, nem tão firmes, mas fortes. Sou uma mulher
completa na minha contradição. Poesia abstrata, na pele concreta.
No
rosto, lábios grossos e grandes, nariz de porrote e olhos pequenos. Sou
uma mulher comum, fruto da mistura. Meus olhos verdes no cabelo escuro. Uns
cachos nas pontas, ondulado a silhueta, batendo na nuca. Minhas mãos pequenas
nas coxas grossas. Os tornozelos roliços, os braços finos, o osso do punho
proeminente.
Calço
35. Sutiã P, calcinha M. Uma mulher inteira desigual. Dizem que deveria ter
crescido mais. Desconfio que se cresci, foi pra dentro. Nas entranhas é que
estão as profundezas. É aí que fico maior, neste vasto campo minado e florido.
Neste latifúndio sem reforma agrária que é o sentir. Um feudo a ser explorado,
pasto infinito de ideias e sensações.
Sou uma
mulher pequena e mediana. Repito rotinas buscando aterrar. Sou ar. Gêmeos, ascendente
Aquário, lua em Libra. Disseram outro dia que não deveria estar viva. Deve ser
porque gosto de voar. E, sendo assim, de pousar.
Gosto
de mesa posta, de comida cozinhando, do cheiro do feijão perfumando a casa, das
risadas que saem de momentos displicentes. Não faltam gás, coragem e alma. Esta
última segue caminhando com cicatrizes, marcas, memórias e algumas dores.
Carrego a mulher que sou.
Me
sobra crença. Meu estoque de fé veio no atacado. Não sou do varejo. Sou
insistente, cultivo a teimosia, semeio minha opinião. Mudo de lugar, ponto de
vista, que nem o sol ao longo do ano. E choro como a chuva de maio, mês que me
recebeu neste mundo. Aprendi a chover de alegria e de tristeza, de emoção e de
pesar. Aprendi a desaguar e inundar, conforme a maré.
Nasci
numa cidade de pedra e mar. De lama e mangue. De arte e desigualdade. Quebro as
ondas nos arrecifes como o oceano em Boa viagem. Vou esculpindo o espírito. Vou
queimando a pele, vou desidratando.
Quando
me deparo com o espelho, vejo muito mais do que escrevo agora. Vejo passado e
presente pulsando num diálogo que adivinha o futuro. E nada vejo, ao mesmo
tempo. Os olhos mais cansados, perdem os detalhes, escondem as pistas do tempo.
Sinto que me perco, antes de achar, nenhuma certeza.
Meu
autorretrato se faz a cada dia. Não ouso assinar embaixo, não reconheço firma.
Não sou conclusiva. As águas que no meu corpo correm já passaram por todas as
veias, tantas vezes e não são as mesmas. Vida, esta duna que é levada pelo
vento.
Germana Accioly é escritora e jornalista. Publicou “Não é sobre você” (Selo Mirada, 2021). Escreve no blog Perder de Vista.