Amores malfadados, de Luiz Henrique Gurgel

 

por Rosana Tokimatsu__




Tudo que é amor se desmancha com dor


Os contos de Amores malfadados, de Luiz Henrique Gurgel, como aponta o título, tratam dos malogros do amor nas mais diversas situações: um homem infantilizado, que mal se equilibra na vida adulta, tentando encontrar  amor junto a prostitutas; a mulher casada que deseja e quer ser desejada por homens mais jovens; o primeiro encontro e as dúvidas do  rapaz sobre se a moça está correspondendo ao seu interesse; um menino vendo recorrentemente um diabinho pendurado no lustre – referência à Lygia Fagundes Telles, inclusive no nome da garota dos desejos do protagonista - , e  este sinalizando sua culpa porque ele se masturba pensando na colega de escola e rindo dele porque esse amor só ficou mesmo no seu imaginário; além de outras mais. As desditas, os desentendimentos, a frustração, a angústia, mas também o partilhar do desejo e os meandros dos sentimentos - aos quais os trechos de canções e versos muito auxiliam para dar significado - são expressos com precisão e sutileza pela linguagem.


            Essa linguagem atinge seu ponto mais alto em “Amor dos homens”, pois nesse conto, o que fala é a linguagem dos amantes, de sua íntima conexão e também dos desencontros que levam ao rompimento. A força frágil da relação amorosa (“tudo que é sólido desmancha no ar”) é expressa em lindas imagens como a do título “amor-dos-homens”, além de “dente-de-leão”, “firme creme brulée”, “suflê finíssimo”. Esse também é o conto mais ousado no que se refere à técnica, já que é narrado a duas vozes, as dos amantes, sendo que elas exprimem o desencontro – o narrador masculino, por assim dizer, parece ter uma visão de maior encantamento por essa mulher, e as suas falas são as mais poéticas, as imagens mais bonitas são dele, ao passo que a voz feminina é mais queixosa, mais crítica em relação ao homem.


Outro ponto alto é “Salva-vidas”, no qual a inusitada atração entre um homem e uma borboleta que ele salva do afogamento é uma metáfora do amor impossível. O bonito aí é a delicadeza da linguagem ao focar na sensorialidade – e sensualidade – do miúdo, das minúsculas patas a andar sobre a pele do homem e produzir um quase imperceptível toque, e do olho no olho. O fato de o homem salvar a borboleta de se afogar, e a paixão nascer daí, remete à fantasia do príncipe que salva a donzela do perigo. Porém, não obstante a idealização, a realidade, a natureza ou as circunstâncias muito diferentes em que cada um está inserido acena para a impossibilidade desse amor, e cada um acaba seguindo seu caminho.          


            Não há temor, no livro, de abordar temas-tabus. Às vezes o fracasso do amor se dá em razão de um trauma, como em “O enigma da moça, talvez”, no qual as dificuldades dessa moça que resultaram em sexo frustrado com o narrador têm ligação com os abusos na infância por um tio. Aliás, o sarcasmo aparece no final desse conto, assim como em outros. No final, ela desaparece sem deixar vestígios, porém a única lembrança que o narrador diz ter dela é o apelido Neca, de Boneca, que o tio lhe dera durante os abusos. Estranho, pois a experiência frustrada parece tê-lo marcado tanto, e como assim ele não se lembra nem do nome dela? E a perversidade em falar sobre esse detalhe sórdido? Afinal, o narrador compreendeu o drama dela e o motivo do malogro, como pareceu quando ela lhe revelou, ou não compreendeu coisa nenhuma e se vinga porque ela o rejeitou? Certos comportamentos nessas histórias de amores malfadados fazem lembrar da psicanálise; em “O enigma da moça”, acaba-se estabelecendo uma estrita relação de causa e efeito (a mulher agia dessa forma porque sofreu abuso na infância; aliás, ela mesma, após a malsucedida e aflitiva relação, confessa o ocorrido), o que pode soar redutor.  Outro conto no qual há ressonâncias da psicanálise é “Amor de mãe”.  O protagonista é uma caricatura, na sua infantilização, no seu medo de se afirmar no mundo, de chegar nas mulheres, e por isso, procurando não só satisfação sexual em prostitutas, como também um amparo, um aconchego nelas, mas não encontra.  Ele suga seus seios sem se satisfazer. Aliás, os seios são falsos, de silicone, o que pode ser símbolo da busca vã da satisfação do desejo e do amparo nessas figuras. No final, é aos seios da velha mãe que ele recorre para o alívio de suas frustrações. Porém, a caricatura do homem infantilizado dá um tom cômico ao conto, o que é interessante.


O tema-tabu aparece também em “Sapore di Mario” (nesse título e no final, de novo o sarcasmo). Um tabu não pela relação homossexual, mas pelo estupro que ocorre muitas vezes entre homens.   


Os contos, de modo geral, formam uma unidade que é justificada pelo título, exceto por “Shirlei Sombra”. Parece-me que aí não há amor malfadado, porque esse narrador é muito lacônico. Ele conhece a garota de programa e mantém encontros com ela, mas não menciona como eram esses encontros e o que ele sentia realmente, diz apenas que tinha medo de se apaixonar. Ele afinal a amava? No caso, os encontros acabaram em razão da morte da moça, mas o narrador nem se preocupa em dizer do que ela morreu. Então que amor malfadado é esse, se parece nem haver amor? Nesta história não há um relacionamento amoroso malogrado como nas demais. Um escritor se apropria dos textos de uma mulher, assumindo a sua identidade poética e se beneficiando muito com isso. De início ele tem a intenção de publicar os poemas que Shirlei Sombra lhe confiara, como forma de homenagem, mas foi só lembrar da esposa e da avó da moça, a qual não sabia de sua atividade na noite, para se passar como autor de seus poemas. A epígrafe desse texto é de Antonio Tabucchi, sobre remorso, mas o narrador evasivo, lacônico, não parece ter remorso.  A visão que ele tem de Shirlei aparecendo no vidro da janela no final não é suficiente para afirmar que se sente culpado. E assim o escritor acaba por sufocar a voz de uma mulher, negra, pobre e periférica ao assumir sua identidade, apesar de divulgar essa condição através dos textos dela. Parece-me, aí, que a intenção de mostrar o macho se apossando dos textos femininos é somente apontar a ironia da situação. Em “O belo Antonio”, por sua vez, acontece o contrário: após o encontro entre um rapaz e uma escritora, não só ela não correspondeu a seus desejos, como também o transformou em um príncipe nanico de um conto – sendo um príncipe nanico uma anti-idealização. Ou seja, aqui vemos a escritora rechaçando o homem, enquanto em “Shirlei”, é o escritor que se desfaz da mulher.


No mais, fica a impressão de uma escrita muito habilidosa, de uma linguagem que dá forma aos sentimentos, sensações, desenganos, conflitos e dores do amor, e de contos repletos de referências, intertextos, que dão muito prazer na leitura.   

 





Luiz Henrique Gurgel - É paulista de Santo André, professor que se debandou para o jornalismo há mais de 20 anos. Trabalhou com projetos editoriais do Estúdio Elifas Andreato, em São Paulo, onde fez parte da equipe de criação e foi um dos editores da revista Almanaque Brasil, extinta publicação de bordo da TAM Linhas Aéreas; ainda com Elifas foi pesquisador e redator da série em fascículos “História do Samba”, lançada pela editora Globo. Também participou da equipe de programação da Galeria Olido, centro cultural da Prefeitura de S. Paulo, logo após sua inauguração em 2004, responsável pelas atividades com literatura. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros. Atualmente trabalha com projetos educacionais e está concluindo uma pesquisa de mestrado sobre Carlos Drummond de Andrade na Universidade de São Paulo. É autor do livro de contos “amores malfadados” (Editora Primata, 2021)




Rosana Tokimatsu é professora e Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP.