Larinha ainda não foi pro céu | Dias Campos

 por Dias Campos__


Foto: Mikhail Vasilyvev




Há quase cinco anos, meu filho ganhava o seu primeiro bichinho de estimação. Mas esse presente não veio só porque fosse insistente. Decidimos, eu e minha esposa, que ele deveria merecê-lo. Para isto, teria que passar por um longo período de prova, de fevereiro até doze de outubro. E se até o Dia das Crianças ele tivesse praticado mais atos meritórios do que traquinagens, nossa família aumentaria de um pet. – imprimimos uma tabela, a prendemos com ímãs na porta da geladeira, e nela ticávamos com tinta azul ou vermelha, conforme fossem as ações positivas ou negativas.


​Mesmo não esperando que o leitor acredite, foi só no último dia do prazo que o lado azul superou o vermelho! E uma vez cumprida aquela condição, o garoto fez jus ao prêmio.


​E se é verdade que o guri não tinha certeza sobre qual a raça que mais o agradava, se cachorro, gato ou furão, também é exato afirmar que, por motivos particulares, fomos suficientemente hábeis para convencê-lo a que escolhesse um bichano.


​Foi assim que Larinha entrou na nossa vida. Vinha adotada, filhote, castrada, e com uma micose que a todos infectou e demorou para ser erradicada. – por óbvio que não fomos nós quem escolhemos o seu nome e o diminutivo carinhoso.


​Nem se precisaria dizer que nossa casa ficou de cabeça para baixo... Eram brinquedos espalhados aqui e ali, mantinha estirada acolá, e vasos de violeta deitados ao chão. Mas de todas as suas travessuras, as que mais doíam aos nossos corações tinham por objeto um dos móveis da casa. Ah! Por que será que os gatos preferem afiar as garras em um sofá de couro a se divertirem com um atraente e prático arranhador?


​E por falar em arranhadas, que também lembram mordidas, Larinha, como todo gato, adorava brincar com minhas mãos e braços. Mas ao contrário de minha esposa e filho, descobri que era alérgico a esse tipo de passatempo. Sendo assim, bastava um leve contato com suas garras ou dentes para que a vermelhidão, o inchaço e, sobretudo, a coceira surgissem. E lá corria eu à procura de água e sabonete.


Havia, por certo, outros inconvenientes. E vomitar bolas de pelos em nossa cama, e sobre o edredom branco, era um dos que mais me “comovia”...


Mas a alegria que Larinha nos proporcionava, seja se apoiando nas patas traseiras para pedir carinho, seja brincando de correr atrás de uma bolinha de papel alumínio recém-amassada, atenuava a importância de toda e qualquer surpresa desagradável.


Ocorre que, com o seguir dos anos, começamos a perceber que o fiel da balança passou a pender para os fatos indesejáveis. Os vômitos, por exemplo, ficaram mais frequentes. 


Foi quando a veterinária, que há muito nos avisara que os seus rins eram atrofiados, explicou que esses órgãos já atingiam estágios crônicos.


É claro que os expedientes ao nosso alcance foram utilizados; em particular, a substituição da comida que oferecíamos por outra ração, específica para gatos com problemas renais.

Mas isso também era paliativo.


Os meses passavam, os rins filtravam cada vez menos, a quantidade de ureia no sangue aumentava... E começamos a sentir um forte odor a escapar pela boca da gatinha. Além do que, as sessões de hidratação com soro aconteciam em intervalos regulares, e a perda de massa muscular era visivelmente preocupante.


E como se tudo isso não fosse suficiente, o ultrassom ainda identificou dois cálculos no rim direito!

Prescreveram, então, um medicamento para dilatar o ureter, na esperança de que as pedras saíssem sem a necessidade de cirurgia.


E para o nosso júbilo, as imagens posteriores revelaram que elas estavam, sim, se movimentando! 

No entanto, mesmo que tivessem sido expelidas, isso não alteraria a inexorabilidade do prognóstico.


Quando Larinha se foi, um misto de tristeza e alívio tomou conta dos nossos corações.


​Na noite seguinte, meu filho perguntou se ela estava no céu. Respondi que sim; se bem que respondesse menos por convicção do que por esperança.


​E fomos dormir.


Lá pela madrugada, acordei sobressaltado. Levantei e fui ao seu quarto para ver se tudo estava bem.

Amigo leitor, é provável que você não acredite, mas vi Larinha na cabeceira da cama, enrolada em si mesma, e com os olhos brilhantes a me fixarem.


Sonhava? Tenho certeza que não. Tanto que voltei para o quarto sereno e sorrindo.


Quando deitei, minha esposa abriu os olhos. E, sonolenta, perguntou como estava o garotão. Respondi que dormia profundamente, e que era velado por um anjinho.


Não sei quando Larinha irá para o céu. E, para dizer a verdade, espero que não tenha pressa.






Dias Campos
 é autor do romance "As vidas do chanceler de ferro", Lisboa: Chiado Editora; Colunista do Jornal ROL; do (atual) site Cultura & Cidadania; do Portal Show Vip; e do (atual) portal Pense! Numa notícia; autor de diversos textos literários; autor e coautor de livros e artigos jurídicos.