por Alessandro Caldeira__
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Foto de Karl Fredrickson na Unsplash |
Para mim, o milagre era o limite de qualquer ser humano. Ele Ă© o Ășltimo instante: sabemos que da prĂłxima nĂŁo dĂĄ para escapar. PorĂ©m, Ă© estranho que eu sĂł tenha ouvido falar dessas histĂłrias de pessoas agraciadas pelo espĂrito divino. A maioria das testemunhas eram senhoras, elas tinham sempre alguma coisa para contar a respeito dos seus e dos milagres dos outros.
Uma delas, por exemplo, me contou: enquanto estava tomando cafĂ© na Rota Verde, viu uma mulher de muleta entrando na igreja e, horas depois, saiu sem dificuldades para caminhar e, para dar existĂȘncia Ă sua alegria, fez questĂŁo de jogar as suas muletas no meio da rua.
Das poucas vezes, no entanto, que entrei na igreja nunca presenciei um milagre. Assim como SĂlvia, tambĂ©m estava Ă procura do meu, talvez menos por fĂ©, mais por beleza. Os que recebem o milagre sĂŁo mais silenciosos, taciturnos e amorosos. Ă como o viciado que aprendeu o poder de confessar as coisas apenas para si.
Mas essas dĂșvidas me causavam a terrĂvel angĂșstia de deslocamento do mundo, uma distĂąncia entre o que eu sou e o que eu queria ser. VocĂȘ entende? Queria me confirmar entre essas duas versĂ”es, por isso precisava de uma prova irrefutĂĄvel.
Sentia que estava agindo errado. Dizia para mim mesmo que Deus me castigaria por duvidar. Mas nĂŁo era de Deus que eu estava duvidando, mas de mim: serĂĄ que eu nĂŁo era capaz de presenciar um espetĂĄculo bĂblico? De todos, eu era o Ășnico desprovido daquela beleza que sempre ouvia falar?
Talvez o que faltava era mais presença, pensei. Decidi ir todos os dias na igreja, só que quanto mais o tempo passava, não via o milagre. Desisti.
Mas Silvia permanecia imóvel na minha frente, seus dedos estavam frios - não sei se pela posição que insistia em ficar ou se pela doença- e pousou sobre o meu rosto,- um gesto afetuoso me fazendo relembrar os velhos tempos de quando passava as mãos em mim antes de me beijar-, tentando arrancar a resposta de que tanto precisava.
Se levantou, foi atĂ© a penteadeira e começou a me observar pelo espelho: "estĂĄ claro, vocĂȘ tambĂ©m nĂŁo acredita. NĂŁo acha que eu possa vencer a doença". NĂŁo, dizia, nĂŁo Ă© verdade. - EntĂŁo, me diga, eu vou sobreviver?
Ela precisava mesmo dessa resposta? Precisava mesmo de um milagre agora, nessa altura da vida? Mais que isso: por que a resposta tinha de ser minha? Eu não queria mentir. Não queria dar esperanças a ela de que tudo voltaria ao normal.
Ao mesmo tempo, a sua forma fĂsica, o seu corpo rĂgido de frente ao espelho e as suas mĂŁos pousadas sobre os joelhos me davam a necessidade de lhe apresentar, mais uma vez, aquela alegria que sentia quando andava pela casa com o seu olhar atento avaliando os mĂłveis, vigiando a casa como se ela fosse tĂŁo viva quanto os seus moradores.
Da minha parte descobri que nĂŁo podia odiar SĂlvia. NĂŁo era capaz. De repente, ela se tornou mais viva aos meus olhos: a sua respiração era tĂŁo forte como das outras vezes, longe da doença, podia ouvĂ-la incansavelmente enquanto esperava a minha resposta. Como alguĂ©m assim pode estar prestes a morrer? NĂŁo parecia, agora, que essa mulher que se encontra na minha frente, com os olhos parados, fixos sobre os meus atravĂ©s do espelho fosse do tipo que morresse.
Nada além de humanidade, pensei. Sim, o fato de que aceitamos a morte de alguém se trata apenas de mera humanidade. Imagino que uma doença terminal nos coloque frente ao nosso lado mais humano. Quem dera se pudéssemos ser mais do que meros seres humanos.
Eu poderia virĂĄ-la de frente e seria capaz de mentir: âsim, SĂlvia, vocĂȘ vai sobreviverâ; âsim, SĂlvia, vocĂȘ estarĂĄ aqui para sempreâ; sim, SĂlvia, tudo voltarĂĄ ao normalâ.
âEstou indo emboraâ, disse, acordando do meu sonho enquanto fugia para a sala como um fantasma.
â Silvia, espera!
â VocĂȘ nĂŁo acredita.
â VocĂȘ acabou de se levantar.
â NĂŁo Ă© o bastante.
â Mas fez muito mais do que muita gente em suas condiçÔes -EntĂŁo, me diga. Eu preciso que vocĂȘ acredite em mim, em nĂłs; em milagre.
Ficou parada, com os olhos fracos e sem luz, tentando mostrar ainda alguma disposição para continuar de pĂ©: milagre existe? Perguntou como se fosse a Ășltima frase antes de cair no chĂŁo. PorĂ©m, estava claro para mim que, agora, acredito mais em sua doença do que nela. Num esforço, corroborou: existe? Por um instante tive a impressĂŁo de que ela se manteria firme atĂ© que eu respondesse a sua pergunta vital.
Por fim, enfraquecida, escorregou os seus dedos no sofĂĄ e, antes que alcançasse o chĂŁo, garantiu: nĂŁo, Samuel, milagre nĂŁo existeâ.