A escritora e artista Kênia Marangão estreia no mercado editorial com O vôo das libélulas e outros contos inflamáveis, publicado pela Editora Patuá. A obra reúne 18 contos que transitam entre o cotidiano e o insólito, usando a fantasia como lente para tratar de questões profundas como solidão, desejo, medo e transformação.
Com 116 páginas, a coletânea apresenta histórias curtas que partem de situações aparentemente banais, mas se desdobram em atmosferas oníricas, colocando personagens comuns diante de momentos de ruptura. “Os contos mexem com as certezas, provocam o leitor para que olhe o mundo de outra forma”, afirma a autora.
A escrita de Kênia é marcada por uma linguagem sensível e imagética, que mistura o real e o fantástico sem recorrer à obviedade. Embora as personagens sejam fictícias, ela destaca que são facilmente reconhecíveis em pessoas próximas — amigos, parentes, vizinhos — e até no próprio leitor. Os textos dialogam com uma literatura que busca inquietar e deslocar, sem deixar de lado o afeto e a observação do humano em suas diversas camadas.
A obra tem recebido elogios de autores e críticos. A escritora Leila Capella descreve a experiência de leitura como “surpreendente e instigante”, enquanto o crítico literário Luiz Antonio Ribeiro destaca a força do imaginário presente nos contos: “Kênia dá voz a espaços subjetivos muitas vezes esquecidos pela literatura contemporânea, dominada pela autoficção”.
Conto “Culpa” do livro “O voo das libélulas e outros contos inflamáveis’, de Kênia Marangão
Quando o céu desabou, sem que os bueiros dessem vazão à água, Dona Amália anunciou que era castigo, a punição lançada sobre o bairro por causa da baderna dos universitários nas festas de pouca-vergonha, com bebida demais, roupa de menos, cheias de depravação. E disse mais, a água engoliu tudo porque ninguém teve decência, nem coragem, de ir lá impedir a devassidão.
Com a sabedoria adquirida em décadas de frequência à igreja, sem compreender palavra do que o sacerdote dizia, a aposentada tinha convicção de que era porta-voz dos desígnios do deus julgador em que acreditava. Acessava a contabilidade dele em primeira mão e fazia questão de informar a contrapartida do divino, traduzida em glória ou castigo, conforme os atos e pensamentos de cada um. Aproveitava qualquer oportunidade para segurar as pessoas pelo braço e obrigá-las a ouvir suas revelações. Nos últimos tempos, ultrapassara todos os limites de bom senso.
Fazia compras no mercado do bairro quando viu a moça de short curto e andar vagaroso que girava as pontas do cabelo descolorido entre os dedos. Botou reparo no olhar brilhante, sorriso frouxo, no corpo relaxado... sinais claros de libertinagem. Era uma lambisgóia saliente, mas se a alma não estivesse de todo perdida, poderia salvá-la pelo arrependimento, o melhor remédio. Muniu-se do ânimo de representantes dos céus e seguiu a universitária pelos corredores até que estivesse encurralada entre o balcão das carnes e os sacos de carvão. Com ligeireza ncomum para uma sedentária daquela idade, Amália saltou na frente da moça e foi chacoalhando a pobre, lançando condenações. Ordenou que se ajoelhasse para implorar por perdão. Sem entender os motivos da violência, a estudante negou-se, assustada. Ao pedir socorro, foi atingida por um safanão que a arremessou sobre o dispositor de produtos para churrasco e tudo foi ao chão. A vítima da Dona Amália se estatelou no piso frio no meio dos sacos arrebentados de sal grosso, temperos e farinha .
Juntou gente. Uns tentavam ajudar a moça, outros seguravam a aposentada, que insistia no discurso apocalíptico. Alguns só queriam postar nas redes sociais fotos da jovem com o corpo empanado feito bife à milanesa que se esvaia em lágrimas no meio da lambança. A pequena multidão logo foi tecendo comentários e, entre os sensatos e os esdrúxulos, ouviu-se imbecis defendendo o indefensável. Sem dar ouvidos às pragas celestes, o segurança encaminhou a aposentada até a saída do estabelecimento com a recomendação de que fizesse compras em outro lugar. Deixou claro que só não chamou a polícia porque a moça não quis dar queixa.
Quando a chuva caiu forte e inundou o mercado, Dona Amália disse que era vingança, que o deus dela tinha honrado seu propósito castigando aquele mercadinho chinfrim.
Todavia, o aguaceiro aumentou, arrancou árvores, desfez barranco, foi misturando arroios com esgoto, tornou-se um dilúvio. Como a tragédia atingiu a cidade toda, além das cidades próximas, ela concluiu que seria por alguma culpa ainda maior e mais grave. Decerto, por causa dos pecados dos degenerados dos maconheiros de todos os tipos, ou do pessoal do arco-íris (com aquelas passeatas de safadeza), ou das putas e biscatinhas, das coisas pervertidas que ela imaginava que faziam por aí, ou de tudo isso junto. Cogitou se também estaria pecando por pensar nessas obscenidades, mas logo se eximiu do pecado. Se pensava era para entender os motivos e procedimentos do senhor, nunca por se deixar levar pela perversidade que surgia em sua mente.
O dilúvio persistiu e, ao ver sua casa tomada pelas águas, Amália chorou de espanto, mais do que de tristeza. Por que ela, uma temente do senhor dos senhores, era castigada? Indignada, xingou proferindo blasfêmias, porém se arrependeu. Engoliu o choro, reduziu a revolta a resmungos e, por causa do chão alagado, ajoelhou-se na cama para rezar por graça e por entendimento. Não demorou para que o colchão ficasse encharcado. Agarrou a bíblia da mesinha de cabeceira e, com a água pelas coxas, correu para a cozinha, subiu na pia. Em pouco tempo, a enxurrada lamacenta encheu a cuba com os copos e pratos sujos do almoço, alcançando os pés da beata. Ela olhou para o teto e riu da ironia. Agradeceu pela aposentadoria minguada que nunca tinha permitido colocar forro na casa e a possibilidade de sair pelo telhado. Colocou a bíblia embaixo da blusa, sob a alça do sutiã, escalou o armário, arrancou uma telha, foi para o topo da casa. Lá de cima, se viu ilhada. O fluxo da inundação ganhava força já se transformando em correnteza. Sozinha, sob a chuva, rezou. Berrou rezas decoradas, inventou umas tantas outras, implorou ajuda aos céus. Em cima do telhado, naquele tempo que parecia não ter fim, Amália ouviu o que havia dentro dela e que nunca se atrevera a escutar. Entendeu? Sabe o que merece?
A gravidade da situação criou a urgência. Rapidamente, dezenas de voluntários se organizaram para percorrer as regiões afetadas e resgatar os necessitados. Assim que o barco se aproximou do local, os jovens, de diferentes origens, classes e posições políticas que, por certo, Amália odiaria, ouviram gritos de desespero da mulher. Um rapaz identificou pedidos de perdão no tom esganiçado da voz, entretanto os demais não tiveram a mesma impressão. O comandante se apressou em pegar o megafone e dizer para que ela aguardasse a aproximação do bote, que logo seria resgatada.
Amália saltou quando a equipe estava a poucos metros da casa. Alguns afirmaram ter visto lágrimas, outros, um meio sorriso. Foram unânimes ao dizer que ela pulou sem qualquer alarde. O livro que Amália carregava flutuou por instantes antes de ser também tragado pelas águas imundas.
Nascida em São Paulo, capital, Kênia Marangão viveu a adolescência na cidade de Garça/SP, graduou-se em Artes Plásticas na Unicamp, exerceu o magistério, cursou Direito e hoje segue pela transversal da escrita. Integrou o grupo Pirlimpimpim, de contadores de histórias, fez performances para o público infantil e adulto, adaptações de textos para a oralidade e narrativas originais para as apresentações. Apaixonada pela literatura que une o real ao fantástico, escreve contos e romance. É servidora pública, tem uma filha e um filho, mora com o marido, a mãe, um cachorro, cinco gatos e quatro calopsitas em uma casa abarrotada de livros e plantas. “O voo das libélulas e outros contos inflamáveis” é seu primeiro livro de contos.