por Adriane Garcia__
O poeta indaga a respeito de escrever: “Trouxeste a chave?”. Essa pergunta também pode ficar desperta sobre o ato de ler. Enquanto lia Tanatografia da mãe, de Isadora Fóes Krieger, vinha-me a pergunta de Drummond e algumas reflexões: a chave é uma elaboração também de quem lê, trazendo seus próprios lutos, sua própria filiação; no caso do livro de Isadora Fóes Krieger, a própria mãe da leitora, do leitor. A poeta nos chama para algo muito íntimo, sua elaboração sobre a Grande Perda. Esse algo está atrás de um Véu que cobre uma porta — um portal? Uma vez eu própria escrevi que quando uma mãe morre, fecha-se um portal. Foi Isadora quem me disse que também um portal se abre. “Trouxeste a chave?”.
Se a
melancolia, mostrou-nos Freud, está repleta de pathos; o luto sendo elaborado
está repleto de saúde, é um caminhar nas trevas para alçar a boca do túnel, a
luz que aguarda os que tiveram coragem de atravessar os lugares dantescos da
morte, seguindo para frente. Em Tanatografia da mãe, esse seguir para frente
mostra como, paradoxalmente, elaborar o luto é ir para trás. A morte de nossos
entes queridos nos chama para o passado, para as casas nas quais vivemos, para
os nossos corpos outros que não existem mais, corpos da juventude, da infância,
corpos intrauterinos, corpos que se misturam com nossos espaços de memória, em
tempos simultâneos, corpos-casa.
Tanatografia
da mãe é a carta em versos que a poeta escreve para si mesma, sendo ela própria
a remetente-destinatária, em um jogo de substantivos compostos, pois nossa
identidade é um mosaico de tantas, tantos e tudo que já passou por nós; uma
identidade alienada, em essência, pois traz do outro e se torna no outro, um
constante devir a partir dos encontros. A carta da poeta é a nossa carta,
carta-diário, daqueles com cadeado e uma pergunta: trouxeste a chave? Um diário
do luto, mas antes, um diário do encontro. A carta dirigida a si mesma,
mostra-nos Isadora Fóes Krieger, ou melhor, lembra-nos, é carta extraviada,
como quase toda comunicação e sua falibilidade. Extravio porque o outro que a
recebe é um destinatário estranho a qualquer plano inicial, destinatário
imprevisível e desconhecido, uma leitora, um leitor. Extravio porque ao receber
sua própria carta, ela, a remetente, também já é outra. A morte causa grandes
transformações, uma coisa é a filha-com-a-mãe-viva, outra, a
filha-com-a-mãe-morta.
Muitos
alumbramentos e sustos se dão durante a leitura de Tanatografia da mãe, por
exemplo, de repente, se dar com a verdade de que a mãe é um território, um
continente, de que a criança-com-a-mãe (aqui, antes de separar uma identidade)
precisa “se desprender da mãe para pensar”, encarar que a mãe-em-mim está
instalada como superego e figura de autoridade. É assim que Deus é equiparado à
Mãe, quando podíamos achar menos herege o contrário. A mãe, assim como Deus,
surge do lugar do incompreensível: a Mulher que Não Sei e, assim como em tantas
religiões, tudo retorna a Deus, “do pó vieste e ao pó retornarás”, tudo retorna
à Mãe.
Com o uso de maiúsculas, um recurso linguístico de personificação, a poeta cria entidades como Corpo Insustentável, Canto Inaudível, Remetente, Destinatário, Nostalgia da Clareira, sempre demonstrando que há o inapreensível, pois o extravio é também isso, a impossibilidade da Poesia: “não pretendemos fundar a filosofia do encontro/ do abismo com o pássaro,/ ao contrário, o estudo da carta extraviada tem/ como matéria sublime o deslocamento” — deslocamento que é também uma das formas de o inconsciente se manifestar, um de seus meios de expressão disfarçada.
Tanatografia
da Mãe flui para o encontro da Poesia com a Psicanálise. Um momento
interessantíssimo é quando o poema se constrói na lógica dos atos falhos: “a
mãe permanece imóvel/ na rua um grupo de jovens volta de uma festa/ parecem
falar sobre amor;/ “despeço-me de ti como quem solta a própria mão na beira do
precipício.”// leio: com quem solta a própria mãe.” O que Isadora Fóes Krieger
consegue neste livro é para além de seu próprio mergulho no líquido amniótico
primordial (Mãe, Deus, Vida-Morte, Mistério), a cumplicidade da leitora, do
leitor, nesse mergulho. Uma leitura uterina, sobre um lugar em que todos
estivemos, argutamente nos lembrando de que “Às vezes uma mãe é apenas uma
mãe.”
Tanatografia
da mãe
Isadora
Foés Krieger
Poesia
Editora
da casa
2022