por Luís de Barreiros Tavares__
Poeiras da Filosofia V
Este ensaio foi pela primeira vez publicado na revista Caliban a 18/07/2025
Imortais mortais, mortais imortais, que vivem a sua morte e morrem a sua vida.
Heraclito, Fr 62
Das sociedades selvagens às sociedades modernas, a evolução é irreversível: pouco a pouco os mortos cessam de existir.
Jean Baudrillard
1. “Contra o nosso sonho de perder tudo, de tudo esquecer, construímos uma muralha inversa de relações, de conexões, de informações, uma memória artificial densa e inextricável, e enterramo-nos vivos no seu interior com a esperança fóssil de sermos redescobertos um dia.” Jean Baudrillard, L’échange symbolique et la mort (1976).
2. Hoje, a morte de alguém de destaque, arrasta cerimónias mediáticas até à exaustão, até morrer de tédio, diríamos. Acima de tudo está, não propriamente o lamento, o pesar colectivo (“O imenso tráfico mortuário já não é da ordem da piedade” Baudrillard), mas o espectáculo pelo espectáculo de que estamos cá (os vivos) e os outros já cá não estão (os mortos). Não se trata tanto de lembrar o morto. Mas, mais propriamente, de nos lembrarmos de que estamos vivos por intermédio dos mortos. Momentos chave para despertar as pequenas consciências em geral. Há toda uma mise-en-scène e uma comunhão superficial.
3. Uma outra leitura, filosófica e ecoando o pensamento mágico, é a de Vladimir Jankélévitch em La Mort (1966):
“O homem provisoriamente poupado realiza, diante da morte do outro, a sua fraternidade de destino com a vítima hoje designada. Assunto pessoal de cada um, assunto do Eu (Moi) multiplicado pelo Nós (Nous), a morte põe a nu o regime contraditório do Absoluto-no-plural (l’Absolu-au-pluriel)…”
4. Mas a cobertura mediática da morte nos nossos dias é o garante, a certificação de que estamos vivos, de que cada um está vivo na assistência da morte do outro. Estranha salvaguarda da vida. Só assim, inconscientemente, se aviva a nossa vida. Só assim o confirmamos. À custa da morte do outro. Mas não de uma forma que seja ritualística na plena acepção do termo — ou na “ordem simbólica” (Baudrillard) — , onde a morte é assimilada no seu sentido de partilha com a vida. Nos povos ditos primitivos, o duplo — figura arcaica do espírito, da alma (Platão…)— convive com o vivo e lhe sobrevive, como tão bem mostrou Edgar Morin em O Homem e a Morte (1951):
“O duplo é o âmago de toda a representação arcaica que diz respeito aos mortos. Mas esse duplo não é tanto a reprodução, a cópia conforme post mortem do indivíduo falecido: acompanha o vivo durante toda a sua existência, duplica-o, e este último sente-o, conhece-o, ouve-o e vê-o, por meio de uma experiência quotidiana e quotinocturna, nos seus sonhos, na sua sombra, no seu reflexo, no seu eco, no seu hálito […].”
“O duplo, que vive integralmente a vida do vivo, não morre com a morte deste. A morte não é mais do que uma doença de pele. Só a pele dele é que está doente, responde um canaca a Leenhardt, que o interroga acerca de um morto. Como diz Píndaro, «o corpo obedece à morte omnipotente, mas o eidolon do vivo permanece vivo».”
5. Pelo contrário, nos nossos dias, trata-se de exorcizar a morte, sendo que, por seu turno, a vida é amortecida, anulada parcialmente através das formas fictícias do capitalismo prenhe do hedonismo artificial do consumismo, de um culto do corpo-objecto, de privação do presente por tanto o enaltecer com a superficial actualização mediática, tecnológica, informativa e meramente espectacular sempre em dissipação. Por isso, é necessária a morte, mas sempre de fora! A morte que vem, que chega, a partir do outro (e dos outros, nomeadamente na produção das guerras, na sua economia bélica e no seu voyeurismo).
6. “O imenso tráfico mortuário já não é da ordem da piedade, ele é o próprio signo da desafecção — consumo da morte. Assim, ele cresce proporcionalmente em relação ao desinvestimento da morte.” Baudrillard, op. cit..
7. O pensamento encontra-se inevitavelmente associado à consciência-assistência originária da morte.
Saudamos a alegre manhã que, por sobre o vazio e o negro da síncope nocturna, renova o presente de hoje e o passado da véspera e consagra a fidelidade da continuação.
Vladimir Jankélévitch
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Poeiras da Filosofia IV
Os ecrãs dos Robertos
https://revistacaliban.net/os-ecr%C3%A3s-dos-robertos-cea4b150a9d0
Poeiras da Filosofia VI
A Filosofia…? — O que é…?
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Luís de Barreiros Tavares nasceu em Lisboa em 1962 e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa (2007). Autor de alguns livros, entre outros: O Acto de Escrita de Fernando Pessoa; Em Roda Livre, com Eduardo Lourenço; Sulcos, com Jean-Luc Nancy; 5 de Orpheu (Almada — Amadeo — Pessoa — Santa Rita Pintor — Sá-Carneiro). Colaborador regular nas revistas “Nova Águia”, “Caliban”, “Triplov”, “Mirada (Br)”. Publicações nas revistas “Comunicação e Sociedade” (CECS – UMinho), “Comunicação e Linguagens” (CECL – UNL), “Pessoa Plural — Brown university”, “A Ideia”, “Philosophy@Lisbon” (CFUL – UL), ”Zunái (Br)”, “Suplemento acre (Br)”, “Grou Cultura & Arte (Br)”, etc. Vice-diretor da revista “Nova Águia”. Membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono (MIL). Editor das edições-vídeo “Passante”. De um modo cifrado, mantém-se artista plástico. Já deu umas aulas. Responsável pelo espólio do poeta Manoel Tavares Rodrigues-Leal.
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