Lançamento do livro Desenterrar os ossos, de Priscila Branco

 por Taciana Oliveira* | 



Em Desenterrar os ossos, publicado pela Macabéa Edições, Priscila Branco constrói uma obra poética que se destaca por sua densidade simbólica e emocional. Não se trata de um livro de memórias no sentido linear ou documental, mas de um gesto arqueológico, uma escavação das camadas subterrâneas da experiência humana. A escolha dos “ossos” como eixo simbólico não é casual: eles representam, ao mesmo tempo, a morte e a permanência, a fragilidade e a dureza. É a partir dessa imagem que a autora estrutura um projeto literário que atravessa o íntimo, sem cair no sentimentalismo. Há aqui um olhar preciso, quase clínico, que transforma experiências pessoais em matéria poética universal.

A obra se organiza em três núcleos — infância, trauma e envelhecimento — que, ao invés de sugerirem uma linha reta, erguem uma espiral temporal. Essa estrutura, nascida de um fluxo criativo, imprime aos poemas uma pulsação viva, como se fossem fragmentos escavados de um corpo-memória. Na revisitação da infância, Priscila Branco desmonta a ideia de um passado idílico: a infância é densa, pesada, cheia de ruídos e fissuras, como a própria ossatura que dá nome ao livro. O realismo mágico que atravessa a obra não inventa mundos paralelos, mas ilumina as fendas do real, revelando a magia que habita o cotidiano mais banal.

A morte, presença constante, aparece aqui com intimidade e sem dramatismo, funcionando como sustentação da ossatura narrativa. Escrever, para Priscila, é uma forma de disputar espaço com a finitude. É transformar dor e reminiscências   em palavra lapidada, em gesto poético.

Desenterrar os ossos é uma obra que dialoga com as principais vozes da nova geração da poesia contemporânea brasileira, mas que mantém um timbre singular, íntimo e urgente. Não se trata apenas de ler, trata-se de escavar junto, de partilhar silêncios, rachaduras e encantamentos.

Leia abaixo uma entrevista com Priscila Branco:

1. Seu livro propõe uma escavação poética da memória.  Por que escolheu a imagem dos “ossos” como eixo simbólico dessa narrativa?

Os ossos ocupam um lugar ambíguo entre os tempos: representam a morte, ou seja, a noção de que tudo passará e a carne perecerá; porém, são também a parte mais duradoura da presença do ser humano (entre outros bichos) no mundo. E não é isso que é a memória? Justamente algo que não existe mais se prontificando a durar e a ser desenterrado, mesmo que inconscientemente.

Os ossos se tornam basilares de uma narrativa universal, em que todos podem se identificar e cavar na terra suas próprias descobertas paleontológicas, marcas da infância e de uma vida que vai se enterrando e desenterrando ao longo da leitura. Afinal, todos somos sustentados por uma ossatura bem dura, mas que pode carregar muitas rachaduras e segredos. 

2. Há uma presença forte da infância nos poemas. Como foi o processo de revisitar essas lembranças no ato da escrita?
Apesar de parecer um livro de memórias, Desenterrar os ossos não é autobiográfico. É claro que todo escritor extrai da própria vida muita matéria para se criar ficção e poesia, pois tudo pode se tornar motivo de criação poética: um passarinho pousando num fio num dia nublado, uma vizinha cantando Queen desafinadamente, o brilho do sol batendo na janela ao lado. Porém, ao criar um poema, colhemos do real alguns pequenos vislumbres, como esses citados, mastigamos bem mastigado, cuspimos de volta no chão, pisoteamos, jogamos terra em cima e esperamos. Depois disso tudo, pegamos do solo a pequena coisa deformada que chamamos de palavra e a transformamos em algum verso que mais tarde poderá se tornar um poema inteiro.

Acho que esse é um pouco o processo de revisitação das lembranças da minha própria infância: o velho do saco não me dá mais medo, sapos cabem na minha mão, os livros se tornam uma espécie de salvação e a missa um lugar que beira o insuportável. 

É duro olhar para qualquer infância. Ela é também como os ossos: cheia de morte pulsando em seus cantinhos e muito, muito pesada. 

3. A estrutura tripartida (infância, trauma, envelhecimento) é também uma linha do tempo. Essa divisão surgiu no processo ou foi pensada desde o início?

Início e fim partem de um mesmo lugar em Desenterrar os ossos, não apenas porque foi pensado dessa forma, mas também porque seu processo de escrita aconteceu muito rápido: tive um surto criativo e escrevi o livro inteiro de um dia para o outro, sem parar. Suei frio, tive taquicardia e bruxismo profundo durante a escritura desses poemas, que foram quase vomitados de uma vez.

A pulsão de vida do livro foi tão grande, que ele furou a fila de outras obras que vinha escrevendo e organizando há muito tempo. Apesar da rapidez (estamos falando de horas consecutivas de escrita!), é um livro muito bem pensado, com divisões bem explicadas e conectadas e com uma quebra da linearidade do tempo, gerando leitura circular e a compreensão de que o tempo não anda, mas espirala.

Desde o título do livro, que veio antes dos poemas, eu já sabia o que queria escrever e como os capítulos se desenhariam. Perceba que chamo as partes de “capítulos”, como em um romance, porque, apesar de ser um livro de poesia, ele tem uma narrativa, e os poemas vão se completando e contando uma história.

4. A morte aparece constantemente, mas sem dramatismo, quase como uma presença íntima. Como você enxerga essa relação entre finitude e criação poética?

Acredito que escrevemos contra a morte. Não no sentido necessariamente da revolta e muito menos o da aceitação: escrever é como dar um abraço açucarado na vida, pois conseguimos transformar medos, neuroses e traumas em pedras preciosas e balançar novos berços para memórias tão idosas. 

O escritor não guerreia contra a morte numa grande batalha sanguinolenta: ele sobe num palanque e compete com ela pela presidência do país. Ele salva um pequeno cachorrinho que foi largado à própria sorte dentro um latão de lixo num dia frio de domingo. Ele puxa pela camisa uma senhora cega que ia atravessar a rua quando um caminhão desgovernado cruzava a avenida. Escrever é sempre narrar o impossível, mesmo quando tudo se parece com o real. Todos os dias, colocamos a morte em um potinho, jogamos água dos olhos e fazemos nascer feijão. 

5. O livro articula um realismo mágico discreto, enraizado no cotidiano. Quais foram suas referências literárias ou afetivas para construir essa linguagem?

Aproveitando para explorar um pouco o nome desse gênero, “realismo mágico”: acredito que há muito assombro e encantamento no real. Sou definitivamente uma poeta das pequenas coisas e desde muito nova me deixo levar pelos estranhamentos que a vida me proporciona. A minha poética caminha por esse lugar das encantarias e da realidade crua, porque as duas coisas são uma só. Afinal, há muito pó de estrela dentro da asa de uma barata.

Tenho alguma dificuldade em elencar referências literárias, pois leio muita coisa desde criança e tenho uma facilidade imensa em me apaixonar por livros e autores. Não gosto de listar assim, porque vou sempre esquecer alguém, e toda lista é incompleta. Mas sou uma leitora múltipla, transito pela poesia, romance, crônica, contos, fantasia… Porém, para quem quiser saber alguns nomes que muito admiro, trouxe algumas referências de poetas nas epígrafes do livro: para descobrir quem são, é preciso ler Desenterrar os ossos!


Poemas do livro


O velho do saco 

No bairrinho, um senhor mancava com sua bolsa rasgada. 

As crianças todas tacavam pedra pra não serem capturadas. 

Eu me escondia atrás da árvore, com medo de ser levada 

por alguém sem força  

pra me carregar.


Órfãs ou viúvas 

Chegando a hora da morte, entendi: 

sempre estivemos sós


Capítulo anterior Cheia de moscas-varejeiras e urubus bicando palavras a escritura é uma fruta apodrecida inventando passados com tinta fresca.


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Serviço

Com capa e ilustrações da própria autora, a edição traz orelha da escritora Leila Míccolis, prefácio da crítica literária Anélia Pietrani e posfácio do poeta Felipe Ribeiro, reunindo diferentes vozes que dialogam com a escrita da autora. A edição é de Milena Martins Moura e Bianca Monteiro Garcia, com projeto gráfico de Caroline Silva.

O lançamento acontece no dia 24 de outubro de 2025, às 19h, na Livraria da Travessa de Botafogo, no Rio de Janeiro.




Priscila Branco é poeta e escritora, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Pesquisadora da poesia de mulheres, é editora da revista toró, diretora editorial e curadora da Macabéa Edições e colunista da revista cassandraAtua como analista de literatura no Sesc Nacional. Seus poemas já foram publicados em diversas revistas brasileiras, traduzidos para o espanhol (nas revistas mexicanas Granuja e peruana Kametsa) e para o tcheco (na revista Tvar). É uma das autoras da antologia Este imenso mar, do Instituto Camões de Portugal. Integra o Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura (NIELM-UFRJ) e o grupo de pesquisa Mulheres na Edição (CEFET-MG).




*Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo”. Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.