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 por Áurea Silva de Holanda__

 

Foto: Annie Spratt

 Hoje acordei mais cedo e resolvi ler um pouco antes de começar a trabalhar. Estou curiosa com o capítulo final do livro que venho lendo ao longo da última semana. Concentrada na leitura, percebi com dificuldades que uma voz delicada se dirigia a mim.

- Bom dia! Podemos conversar um pouco?

- Quem está aí? – Estava sozinha em casa e o medo me fez tremer por inteiro. A voz vinha do banheiro e, mesmo apavorada, fui até lá.

- Sou eu. Fui escolhida pelas minhas amigas para falar com a senhora. Afinal de contas, sou a mais antiga da casa.

Era minha toalha de rosto cinza. Era linda, com croché na ponta e um belo bordado em flor feitos pela minha mãe. A idade tirou um pouco de sua maciez, mas continuava sendo utilizada. Aqui em casa, os idosos têm o seu trabalho valorizado, não sendo trocados facilmente por jovens sem experiência. Ainda assustada, respondi com suavidade.

- Olá, que honra poder lhe ouvir. Há anos você me faz companhia e nunca trocamos ideias, não é mesmo? Vocês, Toalhinhas, têm demandas? Não estão sendo bem tratadas?

- Não é sobre isso. Somos muito bem tratadas aqui na sua casa.

Respirei aliviada, pois prezo pelo respeito a todos os seres, inclusive os teoricamente inanimados.

- A gente tem percebido que, ultimamente, a senhora tem nos utilizado em situações e lugares incomuns.

- Como assim?

- Sempre fomos usadas no seu banheiro para o trabalho padrão de uma toalhinha: enxugar mãos e rostos depois de lavados. 

- Continuo sem entender.

- Nos últimos tempos, temos sido deslocadas de função e de lugar. Passamos a lhe acompanhar por toda a casa e a enxugar suas lágrimas. E elas são muitas, viu? A senhora não tem medo de se afogar?

E, antes que eu pudesse respondê-la, continuou:

- Chora por tudo, seja notícia boa ou ruim, se emociona até com o vento, quando ele entra pela janela de um jeito diferente. Falei para as minhas amigas, mais jovens na casa, que a senhora não era assim quando cheguei por aqui.

- Você tem razão. Até o pessoal da família comenta que não sou mais a mesma. A verdade é que passei muito tempo guardando minhas emoções dentro de mim e até adoeci por causa disso.

- Sério? Não sabia que isso podia acontecer. É que não entendo muito desses assuntos de humanos... Acho que nós, seres toalhas, somos mais descomplicados.

- Pois é... É possível sim.

- E, sem querer ser intrometida, como foi que conseguiu mudar?

- Ah, isso foi um longo processo que exigiu persistência e força de vontade. Tive ajuda de pessoas especiais também, sem as quais não teria conseguido. Tenho um profundo sentimento de gratidão por elas.

Ela me escutava com atenção e senti-me à vontade para continuar.

- Quando eu não conseguia externar minhas dores, sentia um aperto no peito e na garganta. Faltava até o ar... De vez em quando, isso ainda acontece, mas sigo em frente. Sempre em frente.

- E as alegrias?

- Acredita que até as manifestações de alegria eram contidas? Faltava vibração, emoção mesmo! Hoje, sinto a alegria percorrendo todo o corpo, é uma delícia! Obviamente, as lágrimas de alegria também não podem faltar, né? – falei sentindo meu rosto ficar vermelho.

E continuei:

- Tenho percebido que sentir é viver! Assim, alegre ou triste, deixo a emoção chegar e se manifestar livremente. Sou mais feliz assim!

A conversa fluiu e não percebi o passar do tempo. Era hora de me despedir, mesmo que o coração pedisse para ficar.

- Adorei estar com você, mas preciso trabalhar. Antes de ir, gostaria de saber seu nome. Estamos conversando há tanto tempo e eu nem perguntei.

-  Chamo-me Cinza em Flor.

- Muito prazer, Cinza em Flor! Saiba que já lhe admirava como profissional e agora ainda mais enquanto “ser toalha”.

- Obrigada! O prazer foi todo meu!

- Ah, uma última perguntinha. Gostaria de saber se este desvio de função tem lhes causado problemas. Não gostaria de causar incômodos a nenhuma das minhas toalhinhas.

- Na verdade, estávamos preocupadas com a senhora. Mas, depois da nossa conversa, fiquei tranquila. Falarei com minhas amigas e tenho certeza de que elas receberão as notícias com alegria. A senhora sabe, né? Quando a gente mora na casa das pessoas, a gente sente afeto por elas.

- Que bom saber disso! – falei com a voz embargada de emoção. As lágrimas não tardaram a escorrer pelo rosto e, olhando para Cinza em Flor, perguntei:

- Posso?

- É claro que sim!

Passei Cinza em Flor delicadamente em meu rosto para enxugar as lágrimas e agradeci a dedicação ao longo dos anos. Amanhã é dia de troca de roupa de banho, é hora de Cinza em Flor se perfumar e repousar. Merecido descanso!

 

 




Áurea Silva de Holanda
: professora do curso de Engenharia Civil da UFC, navega entre a lógica e a poesia, escreve fórmulas matemáticas e contos, desenha geometria e mandalas. Faz da literatura o amor que se expressa na palavra sensível. Integra o Coletivo Insopitáveis de cientistas-poetas, com participação no livro Leveza e Escrita Experimental.