Leitura (passional) de Imagem | Quiercles Santana

 por Quiercles Santana__

Foto: Kléber Santana


Uma fotografia em que predomina tons ocres. Nela vemos uma gaiola, dessas de passarinho, que devido a angulação e proximidade da lente, ganha dimensões realistas de cela, prisão. No instante decisivo do registro, foi iluminada da esquerda para a direita, as hastes de madeira fina (ou as barras da cadeia?) marcando o piso com sombras que se diluem em direção ao lado direito da foto.


Dentro das grades, no fundo da cela, há um rolo deitado de madeira escura, que se assemelha a um tronco de árvore, sobre o qual vemos sentado, também em madeira, um pequeno boneco articulável imitando o corpo humano (dos usados como manequim por desenhistas). Braços cruzados, encostado no gradil, cabeça baixa, “pinóquio” parece meditar. Estará mesmo? Se sim, em que pensa? A pouca distância dele, uma miniatura de rádio antigo de pilha descansa no chão. Talvez o cara esteja apenas ouvindo música, alguma coisa que o enternece, uma canção há muito não ouvida. Ou quem sabe apenas escuta as notícias do mundo lá fora?


Chama a nossa atenção um banjo (também de madeira), cujo corpo circular se encontra no chão, o braço encostado no mesmo tronco de árvore em que se senta o homenzinho.


Apesar de bem iluminada, essa não é uma cena feliz. Esses mesmos objetos (o boneco, o banjo, o rádio de pilha e o tronco de árvore), se colocados em outro contexto, poderiam até gerar uma certa nostalgia, mas não uma aflição intensa. Desse modo, só posso dizer que é a gaiola o elemento que, mais que os outros, nos faz gerar pensamentos. Claro que somente com ela vazia também não teríamos a força que dela emana. Mas é ela que representa o tema principal aqui manifesto: o cerceamento da liberdade, que nos detém em seu bojo, que nos impede de ir.


Nesse maldito 2020, dentro do atual contexto político e sanitário, inevitável não pensar que se trata de um artista, que confinado em casa, espera o fim da pandemia do coronavírus para que possa voltar às ruas, tocar o seu instrumento, cantar de novo as suas canções e ganhar a vida. Talvez o longo tempo a esperar por uma solução eficaz tenha feito com que o desânimo tomasse conta de seu coração de lenha. A despeito do banjo ele parece ter se resolvido abandonar aos noticiários (às fake News?!), que nos raptam de forma efetiva a paz, a esperança, a alegria. Neste caso, a foto seria uma crítica a como deixamos de lado o que nos constitui e fortalece para nos atirarmos num mar de informações que, mais que nos aproximar das pessoas, nos isolam até de nós mesmos.


Fazendo uso da madeira para quase tudo o que vemos nesta foto, talvez o autor esteja nos dizendo somente, de maneira clandestina, que somos todos feitos da mesma matéria. A gaiola e o banjo, o rádio, o homem e a árvore decepada, mãe que morreu para gerar tudo o que constitui os objetos da foto, é tudo variação do mesmo material frágil e perecível.


Assim, a gaiola real, digamos, está mais na nossa alma de pau que no espaço que nos circunda. Somos nós a nossa cela.


Porém, deixe dizer que de todas as leituras possíveis dessa imagem, hoje prefiro esta: respirando pensativo na quietude do seu calabouço, sentado sobre o tronco (aqui penso no aparelho de tortura usado para castigar o povo preto nas senzalas desse país), o homenzinho decerto está apenas juntando coragem para abrir a grade e ir embora com o seu banjo. Mesmo que para além das barras da jaula esteja a escuridão opaca da noite. Vou torcer por ele. Vou apostar na sua coragem, na ousadia de seu talento, nos sonhos para fora das grades. Vou respirar em comunhão e vou lhe desejar boa sorte e saúde. Eu ainda sou dessas pessoas que preferem continuar acreditando no fim dos aprisionamentos (coletivos e individuais), que tantas e tantas vezes nos impedem de voar mais alto. Voa, sabiá, voa!


PS: Não sei por que, mas essa foto me lembrou o título de um livro que nunca li (“Eu sei por que o Pássaro canta na Gaiola”, de Maya Angelou (Tem um documentário sobre ela na Netflix). Fui ver no Amazon a sinopse do livro. Segue abaixo:

RACISMO. ABUSO. LIBERTAÇÃO. A vida de Marguerite Ann Johnson foi marcada por essas três palavras. A garota negra, criada no sul por sua avó paterna, carregou consigo um enorme fardo que foi aliviado apenas pela literatura e por tudo aquilo que ela pôde lhe trazer: conforto através das palavras. Dessa forma, Maya, como era carinhosamente chamada, escreve para exibir sua voz e libertar-se das grades que foram colocadas em sua vid

a. As lembranças dolorosas e as descobertas de Angelou estão contidas e eternizadas nas páginas desta obra densa e necessária, dando voz aos jovens que um dia foram, assim como ela, fadados a uma vida dura e cheia de preconceitos. Com uma escrita poética e poderosa, a obra toca, emociona e transforma profundamente o espírito e o pensamento de quem a lê.”




Quiercles Santana é arte-educador, ator, encenador, dramaturgo e professor de teatro, formado em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas pela UFPE Fez parte do corpo docente de diversos projetos sociais, a exemplo do Projeto Santo Amaro (da Escola Superior de Educação Física/ESEF-UPE), do Projeto ReVersus (da UFPE), do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI/Projeto Teatro do Oprimido) e do Programa de Animação Cultural (este último em parceria com o ex-Padre Reginaldo Veloso e Fátima Pontes, na Secretaria de Educação da Prefeitura da Cidade do Recife, durante a gestão de João Paulo). Foi diretor artístico da Trupe Circos, da Escola Pernambucana de Circo (Circo Social). Trabalhou seis anos na Diretoria de Políticas Culturais da Fundarpe. Dirigiu diversos espetáculos entre eles: Olhos de Café Quente, do Nútero de Criação Artística; Alguém Pra Fugir Comigo, do Resta 1 Coletivo de Teatro; e Espera o Outono, Alice, do Amaré Grupo de Teatro; Berço Esplêndido, do Grupo Panorama de Teatro; e Balbúrdia, da turma profissionalizante da Companhia Fiandeiros de Teatro. Foi gerente do Teatro de Santa Isabel de 2015 a 2017. Estreou como documentarista em 2013, no filme “Contos Ruas Casa & Quintais”, filme que registra fragmentos de memórias de pessoas idosas, residentes em Recife. É analista de projetos culturais.