Parem de silenciar as vozes de mulheres latino-americanas | Mariela Méndez

por Mariela Méndez__





Stop Silencing Latin American Women’s Voices:

The Case of Clarice Lispector Biographer Nádia Battella Gotlib


Parem de silenciar as vozes de mulheres latino-americanas:

O caso da biógrafa de Clarice Lispector, Nádia Battella Gotlib


by Mariela Méndez, Associate Professor of Latin American, Latino & Iberian Studies, and Women, Gender & Sexuality Studies, University of Richmond



I

Dou aulas centradas na intersecção entre Estudos Latino-americanos, Estudos de Gênero, Estudos de Performance e Estudos de Imprensa. Como professora latina feminista, confesso ter-me sentido muitas vezes, de alguma forma, invisível, imaterial, durante reuniões, sessões institucionais de escuta, fóruns e outras discussões enquanto os colegas não me viam, só olhavam através de mim, como se eu não existisse. Eu tinha um lugar na mesa, eu ficava lá, ouvindo, olhando, para os meus colegas, portanto eles podiam somar o meu nome às estatísticas de inclusão, diversidade e equidade. Meu corpo parecia estar sentado à mesa, mas, na verdade, não era assim. Gosto de citar Sara Ahmed toda vez que preciso explicar para alguns dos meus colegas brancos como tenho me sentido, e já há longo tempo, na minha universidade. As instituições acadêmicas acomodam só alguns corpos, segundo Ahmed. Não tem sido fácil acomodar corpos pretos e marrons tanto para a minha universidade como para tantas outras. Embora ainda haja um longo caminho a percorrer pela minha instituição no que diz respeito à aceitação dos corpos sentados à mesa, acredito que nós estamos indo, ainda que lentamente, na direção certa. Consegui encontrar uma rede de colegas que não precisam de explicação, que podem me proteger e eu posso protegê-las. O esforço físico, psicológico, emocional investido em conquistar os nossos próprios espaços, em fazermos com que os outros nos vejam, nos ouçam, nos aceitem - esse esforço é amplificado quando nós nos comprometemos a não esquecer que é uma situação estrutural, sistêmica. É o nosso dever para com os nossos estudantes e colegas mais vulneráveis seguir lutando contra o silenciamento e o apagamento.



II

Mais do que nunca, as acadêmicas brancas e negras seguem levantando a questão da necessidade dos jornais e editoriais reavaliarem as estruturas responsáveis pelos impedimentos à plena participação dessas acadêmicas. Há pouco tempo, foi possível ouvir muito claramente as queixas dos acadêmicos latinos no que diz respeito ao lançamento do livro American Dirt, que faz parte do book club de Oprah Winfrey. As políticas sociais e culturais por trás da louvação de um livro que perpetua estereótipos danosos e perigosos sobre a cultura que ele tenta supostamente honrar andam de mãos dadas com o silenciamento e o apagamento de uma genealogia inteira de escritores que já têm representado essa cultura do ponto de vista daqueles que pertencem a essa cultura e quem nem sequer têm recebido a mesma atenção. O mesmo se pode dizer das pesquisas das acadêmicas pretas e marrons que muitas vezes são desprezadas e consideradas menos valiosas e rigorosas do que as feitas pelos seus colegas brancos. Esses atos de silenciamento e apagamento são difíceis de rastrear, expor, desvendar quando esses acadêmicos e acadêmicas moram na América Latina. Nesses casos, a besta horrível do imperialismo linguístico ergue a sua cabeça, a sua ruim cabeça racista.


Quando eu me deparei com o texto de Ron Charles no seu Washington Post Book Club Newsletter no dia 15 de maio, o meu corpo inteiro tremeu lembrando a raiva e a frustração que tinha sentido durante muitos anos quando via currículos nos quais as autoras e pesquisadoras Latinas e latino-americanas ficavam ausentes. Na sua discussão de quatro parágrafos sobre a carta ao editor no Los Angeles Review of Books do dia 13 de maio—“Benjamin Moser’s Pulitzer Prize for Biography Is a Travesty”—Charles não inclui o nome da renomada pesquisadora brasileira Nádia Battella Gotlib, uma das autoras dessa carta. Gotlib é a autora, entre outras coisas, de uma das mais respeitadas biografias de Clarice Lispector, junto com a de Teresa Montero Eu sou uma pergunta. Devo dizer, com muita pena minha e dos meus colegas especialistas na obra clariceana, que a biografia de Gotlib, Clarice, uma vida que se conta, não circula nos Estados Unidos tanto como a biografia de Lispector feita por Moser, uma vez que não foi traduzida para o inglês. É interessante lembrar que, num comentário sobre o ensaio de agosto de 2019 no qual Magdalena Edwards descreve a sua experiência trabalhando com Moser enquanto traduzia o romance de Lispector O lustre—ensaio discutido e ligado na carta sobre o Pulitzer de Moser assinada por Edwards, Gotlib, Carl Rollyson & Lisa Paddock—a editora Carrie Paterson escreve:

 

As a publisher, I considered bringing Nádia Gotlib’s biography of Lispector into English, but was discouraged to find that Moser had already revealed many of her points, making it nearly impossible to justify spending the money to translate her work because of the work’s length and difficulty. I’m sure this is not an isolated incident where a foreign language text appropriated by English-speaking author renders the original work all but obsolete unless heavily underwritten and intended to be oppositional to the stolen or appropriated work.[1]


Como editora, considerei a hipótese de publicar em inglês a biografia de Lispector de Nádia Gotlib, mas fui desencorajada ao constatar que Moser havia já revelado muitos dos pontos expostos na biografia escrita por Gotlib, tornando quase impossível justificar o gasto de dinheiro para traduzir esse trabalho, tendo em vista as dificuldades a enfrentar e o tempo a ser gasto na tradução. Estou certa de que esse não é um caso isolado em que um autor falante de língua inglesa se apropria de um texto em língua estrangeira e torna o trabalho original obsoleto, salvo nos casos em que o novo texto comenta ou explicitamente questiona os argumentos do texto roubado.

 

Todos as acadêmicas e os acadêmicos de Luso-Brazilian Studies sabemos que Moser, de várias maneiras, “pediu emprestado” sem reconhecer explicitamente esse empréstimo (para dizê-lo de forma suave), muitos aspectos e particularidades da biografia pioneira de Gotlib. Esse ato de plágio não reconhecido—que tem sido ocasião de muitos artigos de pesquisadores respeitados e que aparece no texto de Paterson — é só um exemplo, ainda que o mais flagrantemente chocante, do agir histórico de Moser na sua colaboração com pesquisadoras, tradutoras e escritoras. A omissão do nome de Gotlib na discussão de Charles sobre a carta ao editor do LARB que a biógrafa assinou junto com Edwards, Paddock e Rollyson é descartado. Ao invés de mencionar tanto Gotlib como os detalhes da apropriação e do plágio de Benjamin Moser, Charles dedica um parágrafo inteiro a seu sentimento de “confusão”, que ele descreve como “a kind of epistemological muddle”, no que diz respeito às acusações contra Moser. Eu encorajo Charles a ler com muito cuidado tudo isso que tem sido publicado sobre essa questão.


III.

Eu contactei The Washington Post em junho com uma versão mais curta desse ensaio na esperança de que fosse publicado com uma carta ao editor. Não recebi resposta nenhuma. Eu esperava um intercâmbio com Ron Charles porque acredito que seria uma conversa necessária, urgente. Jornais como The Washington Post com certeza recebem muita correspondência, muitas mais das que eles podem responder. No entanto, ainda espero que tais jornais façam uma pesquisa aprofundada sobre denúncias que não podem ser abordadas num par de frases encerradas pela conclusão que se trata de “epistemological muddle.” Se compararmos este par de frases com as páginas dedicadas a verificar e reconhecer, e ainda aplaudir, alegações similares feitas por pessoas privilegiadas, podemos comprovar a disparidade, a desigualdade. Podemos aceitá-lo ou não, mas as denúncias feitas pelas mulheres que têm sido vítimas da violência de gênero—como apropriação do seu trabalho, ou assédio, discriminação, agressão ou abuso sexual—amiúde são descartadas porque faltam provas, “evidência”. A “evidência da experiência”, conforme a frase famosa da historiadora feminista Joan Scott, não pode ser descartada e, em especial, não pode ser entendida sem uma análise aprofundada, sem um olhar cuidadoso para a narrativa mais abrangente em que essa evidência é inserida. Essa narrativa hoje indica inconfundivelmente numerosas maneiras nas quais uma sociedade patriarcal e racista silencia e apaga as mulheres latinas e latino-americanas e as mulheres pretas. É irônico, então, que Charles encerre a sua reflexão sobre “Benjamin Moser's controversial Pulitzer win” endossando o podcast de Jill Lepore “Who Killed the Truth?” com a citação “Silenced women bother me [….] They really bother me.” Mr. Charles não parece incomodar-se a respeito do silenciamento de Gotlib no seu texto. Eu estou perturbada demais, tanto pelo silenciamento quanto pelo completo, o quase completo apagamento de Gotlib no corpo de pesquisas norte-americanas sobre Clarice Lispector. Não posso deixar de perguntar-me quantas vezes nós, as pesquisadoras latinas e latino-americanas vamos ser responsáveis por educar e informar aos resenhistas, colunistas, professores e colegas sobre a necessidade de visibilizar a enorme produção crítica feita pelas pesquisadoras latino-americanas na América Latina. Essa persistente produção de conhecimento importa, merece respeito e deve levar o devido crédito, mesmo quando os colegas do norte não façam nenhum esforço em ler e entender essa produção.




Mariela Méndez 
é  professora Associada de Estudos Latino-Americanos, Latinos e Ibéricos, e Estudos sobre Mulheres, Gênero e Sexualidade, University of Richmond








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