A Clareira e a Cidade | Rodrigo Novaes de Almeida

 por Taciana Oliveira__





Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, em seu "Guardador de Rebanhos" escreveu: Há metafísica bastante em não pensar em nada./O que penso eu do mundo?/Sei lá o que penso do mundo!

Ao “tentar” se distanciar das correntes filosóficas, ele se conecta a uma realidade sensorial: O Mundo não se fez para pensarmos nele/(Pensar é estar doente dos olhos)/Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.../Eu não tenho filosofia; tenho sentidos.

Em "A Clareira e a Cidade" (editora Urutau, 2020), Rodrigo Novaes de Almeida faz o caminho inverso e apresenta poemas fincados nas raízes do pensamento ontológico de Heidegger, onde se reside a experiência exploratória sobre a existência. Nesse diálogo existencial a poesia é impávida:


não sou poeta

não quero ser poeta

se ainda tivesse meus vinte anos

escolheria o pugilismo

E se todos fôssemos Muhammad Ali?


Dividido em duas partes (parte I - A Clareira e II - A Cidade), a obra nos oferece um mergulho honesto e corajoso ao inferno do nosso cotidiano de relativismos morais. O exercício poético do autor equilibra visceralidade a uma ironia crítica e dolorosa, onde se contesta a existência em seus arcabouços:


I

A primeira gota do orvalho no Jardim derreterá ao primeiro raio de sol da manhã e produzir-se-á o primeiro som depois do longo silêncio do Inefável.

II

Uma libélula sorverá o primeiro gole e voará rumo à Imponderabilidade.

III

Será criado o Homem. Será chamado Homem. E viverá como Homem.

IV

Estará escrito que o Homem não possuirá asas.

Gênesis


Na obra a palavra transcende sua jornada para verbalizar emoções e romper  as predefinições do que se diz aceitável nas perspectivas de sobrevivência:


Desse caminho vertical para a transcendência

que substituiu o deus morto

(porto seguro primitivo e ultrapassado):


o que dizer sobre mesmo os mais bem-sucedidos

ainda assim se tornarem, antes da queda definitiva,

menos do que deveriam ter podido ser?


Estará o homem condenado a viver

como um animal mediano ambicioso e

sempre aquém daquilo que lhe é exigido?


O existencial infernal


Na concretude do verso a realidade dolorosa e a banalidade do mal se oficializa. É preciso lucidez para se reinventar e sair da caverna. O autor é um cronista do seu tempo ao expor o caos que testemunha:


Serão duas gerações de fome.

Mais três talvez quatro de pandemias.

E não haverá país algum.


Já terão levado nossas águas e nossas terras.

E também o que há debaixo delas.

No lugar depositarão os ossos dos nossos filhos.

Brazil


Em “Sob o domínio dos perversos”, o poeta mapeia o cenário trágico das vítimas conscientes das consequências impostas pela necropolítica: Todos pensam apenas na sobrevivência imediata,/uma vez que o terror é o cotidiano conveniente

A Clareira e a Cidade nasce em um ano de contradições, pandemias e fascismo descarado. No tempo que a ignorância desafia a ciência e devolve à humanidade o execrável como justificativa de um discurso cristão. É portanto uma obra de engajamento. O autor não se omite:


A polícia o agarrou nas imediações

do Complexo da Maré.

Era o suspeito usual. Não reagiu.

Foi encontrado com um tiro na nuca.


Sua mãe chorava diante da câmera de tevê.

A gente é preto, pobre, favelado.

Se não é deus no comando,

é o diabo dos homens.

O suspeito usual


Nesse contexto a poesia de Rodrigo Novaes de Almeida grita por nós. Nela refletimos sobre a nossa inércia e de como nos acomodamos para assistir o nascimento do “homem do pensamento de superfície, utilitário e conveniente.”

A Clareira e a Cidade nos desperta desse sonambulismo e nos convoca para Remição:

Eram gente simples, capazes de pensamento mágico que outros, homens instruídos, não alcançavam. eles não pronunciavam os nomes proibidos para não trazer ao mundo suas mazelas.


e a interdição fazia deles a remição da humanidade.


Não se furtem, deixem que a poesia de Rodrigo Novaes de Almeida ecoe em nossas existências.






Rodrigo Novaes de Almeida (Rio de Janeiro, 1976) é escritor, jornalista e editor. Formado em Comunicação Social — Jornalismo, com pós-graduação em Publishing e passagens pelas editoras Apicuri, Saraiva, Ibep, Ática e Estação Liberdade. Autor dos livros Carnebruta (Contos, Editora Apicuri e Editora Oito e Meio, 2012), Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos (Editora Patuá, 2018), finalista do 61º Prêmio Jabuti na categoria Contos, em 2019, e A clareira e a cidade (Poesia, Editora Urutau, 2020), entre outros. É fundador e editor-chefe da Revista Gueto e do selo Gueto Editorial, projetos de divulgação de literatura em língua portuguesa e celeiro de novos autores. E-mail para contato: rnalmeida76@gmail.com





Taciana Oliveira é mãe de JP, comunicóloga, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.