por Taciana Oliveira |
Tieko Irii lança As Ruas Sem Nome em São Paulo e revisita silêncios da diáspora nipo-brasileira
A escritora e artista visual paulistana Tieko Irii lança seu novo livro, As Ruas Sem Nome (Editora Patuá, 2025), em uma ampla agenda literária na capital paulista, marcada por coletivos e rodas de conversa. A obra, de tom autobiográfico, revisita silêncios familiares e confronta temas como racismo, gênero e diáspora, ao resgatar histórias invisibilizadas de três gerações de imigrantes japoneses. O ponto de partida para a escrita surgiu da descoberta da autobiografia secreta de seu pai, Hisashi Irii, que fugiu de casa no Japão pós-guerra e, após vagar por um país devastado, emigrou para o Brasil. A partir desse relato, Tieko costura memórias pessoais, lembranças de infância e experiências vividas nos anos 1980 e 1990, refletindo sobre deslocamento, pertencimento e o impacto de estereótipos raciais.
Agenda literária
Tieko participa de uma série de encontros em São Paulo. Nos dias 30 e 31 de agosto, integrou o Bunka Matsuri, tradicional Festa da Cultura Japonesa, no estande do coletivo Escritoras Asiáticas Brasileiras, na Associação Bunkyo (Liberdade). Esteve também presente no painel HQs e Literatura: Vozes nipo-brasileiras contemporâneas, ao lado de Beatriz Misaki, Massanori Takaki e Ricardo Tayra, com mediação de Ana Shitara.
No dia 06 de setembro, participa do Nippon Fusion Fest, em roda de conversa sobre ancestralidade e literatura amarela, com Marina Yukawa, Ana Shitara, Beatriz Misaki, Adriana K. Lerner e Flavia Sakai. No fim de semana de 13 e 14 de setembro, marca presença no Orgulho Nerd SP 2025, no Parque Ibirapuera, e também na Casa Abe, em mesa sobre identidade e escrita. Já no dia 21 de setembro, participa do Aurora Fest, no Largo da Batata.
Entre Brasil e Japão
Em As Ruas Sem Nome, a autora entrelaça sua trajetória pessoal com reflexões sobre o mito do “perigo amarelo”, o estereótipo da “minoria modelo” e as ambiguidades do soft power japonês. Para Tieko, ser uma mulher nipo-brasileira nos anos 1980 significava enfrentar bullying, invisibilidade e exotificação. “O projeto de branqueamento brasileiro e o mito da democracia racial nos colocaram em um lugar paradoxal: nem totalmente aceitos, nem totalmente estrangeiros”, analisa.
O livro alterna memórias familiares, trechos da autobiografia do pai e relatos de sua temporada no Japão, no fim da década de 1980, em uma busca frustrada por pertencimento. “Percebi que somos feitos de múltiplas identidades. Não somos nem brasileiros, nem japoneses, estamos em um não lugar — que também é um lugar”, afirma.
Para a autora, a escrita foi mais confronto que cura: “Revisitei memórias que eu queria esquecer — o racismo velado, a vergonha, a culpa e a sensação de não pertencer”, confessa. No processo, também produziu colagens com arquivos familiares, unindo texto e imagem para reconstruir ausências.
Publicar As Ruas Sem Nome, afirma Tieko, é um gesto político: “Durante muito tempo achei minha história banal, coisa menor, de ‘mulherzinha’, sobretudo de uma nikkei fora dos padrões. Mas entendi que essa dificuldade de validar minha voz estava ligada ao patriarcado, ao machismo e ao racismo estrutural. Perceber isso foi libertador. Podemos contar a nossa história — e isso é transformador”.
Abaixo uma entrevista com Tieko Irii:
1. O ponto de partida de As Ruas Sem Nome foi a descoberta da autobiografia secreta do seu pai. Como esse encontro com a memória dele mudou como você olha para a sua própria história?
A história do meu pai era envolta de mistérios e suposições da família do tipo: Ele não gosta da mãe, por isso ele fugiu para o Brasil ou Ele é filho de Ainus, um bastardo. Eram coisas que me incomodavam. Um pouco antes do meu pai falecer, eu fui à sua casa e pedi para ele contar a sua história, imaginando que ele fosse recusar, mas para minha surpresa ele me ofereceu uma cerveja e contou toda sua trajetória antes de vir para o Brasil. Fiquei admirada e estarrecida com seu relato, cheio de aventuras e tragédias familiares. Perguntei por que ele não havia contado para ninguém e ele respondeu: Triste demais, quem se interessaria? Eu também me perguntava quem se interessaria pela minha história. Depois daquela tarde, nunca mais tocamos no assunto e provavelmente sua história morreria comigo.
Após a sua morte, foi uma surpresa enorme quando eu descobri, no fundo de sua gaveta, a sua autobiografia, que ele escreveu um ano antes de sofrer um derrame. O texto era de uma riqueza de detalhes, uma beleza e sensibilidade que não imaginava no meu pai. Gosto de pensar que o livro começou naquele encontro, tenho a impressão de que ele escreveu em uma sentada, um relato corrido, todo rabiscado, que só termina com o ponto final. Como se fosse uma urgência, um acerto de contas com o passado.
Acho que uma das coisas mais lindas foi conhecer um homem para além do pai, um jovem irrequieto, transgressor e corajoso, sem fazer nenhum julgamento ou juízo de valor. Conhecê-lo em sua incompletude, falhas e inteireza. Quando comecei a escrever, como ele, pude me reconciliar com a minha história. Fui percebendo que, de uma certa forma, segui os seus passos, mesmo sem saber nada sobre a vida dele. De como nossas histórias eram parecidas, de como fomos movidos pelo desejo e não nos conformamos com os lugares que estávamos destinados. Acho isso incrível, algo que estava no meu DNA, para mim é um mistério da vida.
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| Pai de Tieko Irii |
2. No livro, você aborda temas como racismo, diáspora e gênero. Qual desses atravessamentos foi o mais difícil de revisitar na escrita?
Acho que o mais difícil foi perceber que muitos aspectos se entrelaçam o tempo todo. Quando ouvia falar sobre o movimento antiracista negro pensava que eu não tinha nada a ver com isso, que o preconceito que sofria era muito menor, era diferente. Eu me via como uma pessoa “quase branca”, foi muito duro me ver como pessoa racializada e que tudo isso tinha a ver com o racismo estrutural, com a divisão de cores e raças criados pela branquitude, com o objetivo de dominar e subjugar os povos considerados inferiores e conquistar seus territórios.
Que o mito da democracia racial não existe, não somos vistos como brasileiros, mas temos um lugar de privilégio. Vale lembrar que a imigração japonesa foi tutelada pelo Japão, que ajudou na ascensão social dos japoneses e descendentes e que aprofunda ainda mais as diferenças que compõe o cenário multirracial brasileiro. Que fazíamos parte desse mecanismo racista de inclusão ou exclusão, de aproximação e distanciamento que varia de acordo com os interesses da branquitude e do capital, e vai mudando com o tempo. Quando eu era pequena, as pessoas tinham nojo quando eu dizia que comia peixe cru; quando comecei a trabalhar, o Japão era uma potência mundial, a culinária japonesa virou moda, era sofisticado comer sashimi. Para entender a mudança de como eu era vista, tive que entender os processos históricos. De como passamos do mito do Perigo Amarelo para o da Minoria Modelo e o Soft Power japonês. Nós, japoneses e descendentes, ainda hoje somos vistos como pessoas obedientes, dóceis, comportadas, estudiosas, bons em matemática, esforçadas e trabalhadoras. Que vamos roubar a sua vaga na USP. A meritocracia, que somos melhores. São os estereótipos que temos que lidar o tempo todo. A própria colônia espera isso de nós, uma herança que vem da educação que os imigrantes trouxeram em suas bagagens: como considerar um traço egoísta, pensar na própria individualidade; o silêncio familiar e que demostrar o sofrimento era um tabu. Que tudo isso causava uma enorme dor para quem não se encontrava nessas caixinhas, como eu. Na questão de gênero, os estereótipos que as mulheres amarelas sofrem são diferentes, nós somos associadas as gueixas, há uma hipersexualização de nossos corpos, enquanto os homens são emasculados. Temos que ver a interseccionalidade.
3. Você menciona que a escrita não foi um processo de cura, mas de confronto. Pode contar como foi lidar com essas memórias dolorosas durante a criação do livro?
Quando comecei a escrever esse livro fui obrigada a abrir o baú do esquecimento. Foi muito difícil usar a primeira pessoa e assumir as dores e o mal-estar de um corpo que nunca esteve satisfeito consigo mesmo. Ao revirar as memórias que sobreviveram ao tempo, constatei que a maioria delas eram as que mais desejava esquecer. Reviver o racismo, os preconceitos, os estereótipos, os silenciamentos, as violências cotidianas, a falta de identidade e representatividade, a vergonha, a raiva, os medos, as negações, as transgressões e as culpas. Até as experiências boas, as alegrias, os encontros, as descobertas e os mistérios pareciam ter apenas um valor pessoal, portanto sem valor nenhum. Escrever a própria história, sobretudo de uma garota nikkei, me parecia uma coisa menor, coisa de mulherzinha.
Realizei que para construção desse eu-personagem, para além dos fatores pessoais, era necessário desvelar as várias camadas históricas, sociais e culturais das vivências pelas quais passei e que me determinaram. Saí do meu exílio, da solidão de achar que a minha história era só minha, que faço parte de uma história coletiva. Uma investigação que permitiu discriminar, nomear as minhas experiências e entender a pessoa que sou hoje. Ao mesmo tempo, fui a lugares muito profundos e dolorosos, onde não há palavras para tentar tirar um grão de verdade e transformar em linguagem. Foi uma tarefa árdua assumir minha história individual e principalmente validar as minhas escolhas, meus desejos e sonhos. Somos frutos da história, mas também sujeitos da nossa história. Sem dúvida, foi um processo de transformação, muitas fichas caíram, tive muitos insights, chorei muito, mas eu acho que o que mudou foi ampliar a minha percepção de mim mesma e a minha relação com o mundo. Não alcancei o nirvana, continuo a mesma, mas descobri de onde vem os traumas.
4. Em sua análise, ser nipo-brasileira é estar em um “não lugar”. Como você enxerga hoje esse espaço entre culturas? Ele ainda é um não lugar ou se tornou uma forma de pertencimento?
É muito irritante quando uma pessoa me vê e diz “Ah! Eu amo o Japão, a cultura japonesa, queria ser japonês” é difícil fazer entender que não somos o Japão. Acho que faz pouco tempo que os descendentes de japoneses, inclusive eu, se veem como nipo-brasileiros, que temos uma origem, mas somos brasileiros. Somos samba, rock, soul, bossa nova e sushi. A beleza de sermos tudo isso misturados. A identidade como um princípio, mas não como um fim, que somos feitos de múltiplas identidades.
Acho que a ideia de identidade e pertencimento importante para os grupos se organizarem politicamente e lutarem pelos seus direitos, mas sempre existe o perigo de radicalização, acho triste, uma luta que deveria unir todos contra o racismo, segrega mais ainda. E isso serve a quem?
Eu ainda prefiro o não lugar, o lugar do artista, de perguntas e reflexão, ou a ideia do MA, esse entre-lugar, uma noção profundamente enraizada no pensamento japonês. O ideograma Ma é composto pelo kanji sol, que ilumina todas as coisas e o kanji portal, que representa um lugar vazio, um lugar intermediário, de onde podemos contemplar o mundo e suas inúmeras manifestações que podem ou não acontecer. Penso no Edouard Glissant, que podemos imaginar mundos possíveis, inventar um povo ausente, que não queira se sobressair ao outro, que se movimente para além da identidade e sinta todos os fluxos misturados.
5. O livro também mistura texto e colagens com arquivos familiares. Como surgiu essa ideia de unir palavra e imagem para reconstruir memórias?
Como sou artista visual, muitas pessoas me perguntavam se eu ia fazer a capa ou colocar as minhas artes no livro, me sentia pressionada, mas eu achava que o meu trabalho não tinha nada a ver com o livro. Um dia, o meu mentor, Marcelo Carnevale, sugeriu que eu trabalhasse, de alguma forma, com meus arquivos pessoais de fotos, lembranças e objetos para ajudar no processo da escrita e comecei a fazer algumas fotos com esses materiais. Eu percebi que eu tinha muitas fotografias familiares e comecei a fazer um curso de colagem com a artista Renata Cruz, foi maravilhoso, consegui dar forma a lugares que as palavras não alcançavam.
6. Publicar As Ruas Sem Nome é, para você, um ato político. Em que medida acredita que a literatura pode contribuir para ressignificar a identidade e dar voz a corpos e histórias invisibilizadas?
Acredito na política como um conceito bem amplo: é tudo que você pode fazer para mudar a sociedade ou o contexto que você vive. Fazemos isso o tempo todo. Na medida que contamos nossas histórias, particularmente de mulheres, vozes historicamente silenciadas pelo patriarcado, estamos mudando o mundo. Se tiver uma pessoa que sinta como eu, quando eu leio um livro, vejo uma obra de arte ou um filme em que encontro algo que me arrebata e penso: É isso!, vou me sentir realizada. Além disso, a literatura nos dá a possibilidade de nos colocarmos no lugar do outro, de criarmos alteridade e, portanto, um mundo melhor.
7. Você participa de coletivos como o Escritoras Asiáticas Brasileiras e de rodas de conversa sobre representatividade amarela. Como enxerga esse movimento atual de maior visibilidade das vozes asiáticas no Brasil?
Quando comecei a pesquisa do livro me surpreendi com a quantidade de pesquisadores, pensadores, artistas e coletivos que pensavam sobre a experiencia de ser amarelo ou asiático no Brasil e lutam por mais representatividade. Há uma solidariedade bonita e isso é muito potente. Quando fui convidada para participar do coletivo de Escritoras Asiáticas Brasileiras, não imaginava que maior parte das escritoras tinham uma experiencia parecida com a minha e isso me ajudou a validar o meu projeto. O coletivo é espaço maravilhoso de acolhimento e de difusão de nossos trabalhos, que abriu a possibilidade de ocuparmos espaços fora da nossa bolha, como a Flipei e a Flip, onde fizemos um painel inédito na história do evento, só com escritoras nipo-brasileiras.
Adoro conversar com os leitores e fico emocionada ao ver o interesse das pessoas em conhecer um pouco mais sobre nossas histórias ou de descendentes que procuram algo que os represente. Uma coisa que não existia no meu tempo. Vejo que os jovens começaram a se perceber como nipo-brasileiros, mas diferente de mim, que neguei minhas origens, me recusei a aprender japonês, não queria ser vista como uma japa e me afastei, com todas minhas forças, de todos os estereótipos do modelo feminino japonês, essa nova geração tem orgulho de suas origens, gostam de ser o que são. É um momento lindo.
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Tieko Irii é artista visual, diretora de arte e escritora paulistana. Formada em cinema pela FAAP em 1988, trabalhou por 25 anos em publicidade e no audiovisual, com passagens por filmes como Os Matadores (1987), O Menino Maluquinho 2 (1998), Castelo Rá-Tim-Bum (1999), e séries como Retrato Falado (Rede Globo). Publicou três livros infantis antes de se dedicar à "As ruas sem nome", sua primeira obra autobiográfica. Viveu no Japão entre 1989 e 1991, experiência que influenciou sua pesquisa sobre memória, diáspora, gênero e raça.


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